INTRODUÇÃO
A tuberculose é uma doença infeciosa relacionada com a bactéria Mycobacterium tuberculosis, cuja principal manifestação é o atingimento pulmonar.1
Nos últimos anos, tem-se verificado um aumento do número de casos a nível da Europa, sobretudo pelo aumento do número de casos da doença extra-pulmonar.1
O peritoneu é um dos locais extrapulmonares mais frequentemente afetados na tuberculose.2 Descrita pela primeira vez em 1843, a tuberculose peritoneal ocorre devido ao crescimento do bacilo de Koch no peritoneu,3 habitualmente após a sua disseminação hematogénica secundária a partir de um foco pulmonar.2
A introdução da terapêutica antibacilar e a melhoria das condições socioeconómicas permitiram uma redução de todas as formas de tuberculose, incluindo da tuberculose peritoneal.2
A tuberculose peritoneal é uma doença relativamente rara e não apresenta sintomas específicos.4 O seu diagnóstico é difícil e mantém-se um desafio devido à sua natureza insidiosa, variabilidade clínica e limitações dos exames de diagnóstico disponíveis.3 Desta forma, apesar dos diversos exames complementares, o isolamento do M. Tuberculosis através da cultura do líquido ascítico ou exame histológico da biópsia peritoneal mantêm-se os exames de escolha.3
DESCRIÇÃO DO CASO CLÍNICO
Os autores apresentam o caso clínico de um doente do género masculino de raça caucasiana com 80 anos. Como antecedentes pessoais, apresentava Diabetes Mellitus tipo 2, hiperplasia benigna da próstata, patologia osteoarticular da coluna vertebral e antecedentes cirúrgicos de amigdalectomia, cirurgia às cataratas e excisão de lesões cutâneas benignas do tórax há cerca de 20 anos. O doente não tinha hábitos etílicos e/ou tabágicos e não apresentava história recente de viagens. Estava medicado com metformina 850 mg, lansoprazol 30 mg, furosemida 20 mg, silodosina 8 mg, dutasterida 0,5 mg. Dos antecedentes familiares, destaca-se história de doença cardiovascular (pai), neoplasia prostática (irmão) e carcinoma da mama (filha).
O doente foi referenciado da Consulta de Cirurgia Geral por história de aumento do volume abdominal, anorexia, astenia e sudorese noturna com cerca de 3 meses de evolução, assim como, emagrecimento de 4 kg no último mês. Da restante história, destaca-se a ausência de queixas respiratórias, cardiovasculares, genito-urinárias, digestivas ou osteoarticulares. Os resultados do estudo analítico inicial, encontram-se na Figura 1. Realizou uma ecografia abdominal como estudo imagiológico inicial, que revelou a presença de ascite e espessamento do epiplon gastrocólico. Para esclarecimento destas alterações, o doente realizou tomografia computorizada (TC) toraco-abdomino-pélvica, que mostrou a presença de múltiplas adenopatias, nomeadamente aorto-pulmonares (10 mm), na loca de Barety (com 10 mm), perihilares bilateralmente, bem como, uma formação lobulada de 45 mm na região da válvula ileocecal, de valorização duvidosa e por fim, espessamento do peritoneu com densificação difusa do grande epiplon sugestiva de carcinomatose peritoneal e acompanhado de derrame peritoneal. (Fig. 2)Foi realizada uma radiografia torácica, que revelou opacidade do ângulo costo-frénico direito, sugestivo de derrame pleural. O doente foi submetido a toracocentese diagnóstica e evacuadora, com saída de líquido pleural com características citoquímicas de exsudato (Fig. 3), com exame bacteriológico, micológico e pesquisa de bacilo de Koch negativo. O exame citológico deste líquido não mostrou células neoplásicas.
Perante os achados sugestivos de carcinomatose peritoneal, o doente realizou estudo digestivo com endoscopia digestiva alta e colonoscopia com ileoscopia terminal que não mostraram alterações. Fez ainda uma tomografia por emissão de positrões (PET) que revelou extensa densificação da gordura peritoneal com múltiplos espessamentos e lâmina de derrame pleural associado a formações ganglionares mediastino-hilares bilateralmente com captação aumentada de fluorodesoxiglucose. (Fig. 4)
O caso foi discutido multidisciplinarmente, tendo o doente sido submetido a paracentese e laparoscopia diagnóstica. Do ponto de vista do estudo do líquido peritoneal, destaca-se a presença de um gradiente albumina sero-plasmático inferior a 1,1 g/dL, bem como ausência de células neoplásicas em exame citológico e exame bacteriológico e exame micológico e micobacteriológico negativos. Foi ainda realizada biópsia do epiplon e feito estudo anatomo-patológico, que revelou envolvimento do mesmo por doença granulomatosa não necrotizante, sem evidência de metastização por neoplasia epitelial. O exame bacteriológico e micológico da amostra obtida através de biópsia, bem como o estudo micobacteriológico por exame directo (Kinyoun) revelaram-se negativos.
Com base no resultado obtido na biópsia de epiplon, foi pedido estudo complementar etiológico, cujos resultados se encontram descritos na Figura 5. Deste estudo, os autores destacam um IGRA (interferon gamma release assays) positivo e uma PCR (polymerase chain reaction) Mycobacteriumtuberculosis negativo.
Ao fim de 6 semanas, a equipa médica recebeu o resultado da cultura do epiplon em meio de Lowenstein Jensen que foi positiva para Mycobacterium tuberculosis complex. Desta forma, assumiu-se o diagnóstico de TUBERCULOSE PERITONEAL, tendo o doente sido encaminhado para o Centro de Diagnóstico Pneumológico, onde foi instituída terapêutica antibacilar quádrupla (isoniazida, rifampicina, pirazinamida e etambutol). Durante os 9 meses de tratamento, não foram registadas intercorrências, apresentando evolução clínica favorável, com normalização dos parâmetros analíticos, apresentando resolução completa da sintomatologia.
DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
A tuberculose abdominal constitui um dos tipos de tuberculose extrapulmonar mais frequentes, podendo afetar qualquer porção do trato gastrointestinal, peritoneu e sistema hepatobiliar.4
A tuberculose peritoneal representa 1 a 2% das infeções por M. Tuberculosis e 31 a 58% dos casos de tuberculose abdominal.3 Atinge ambos os géneros de forma semelhante, com predomínio em indivíduos entre os 35 e os 45 anos.2
Na literatura são descritas três formas do atingimento peritoneal: wet type com ascite, tal como o caso descrito; dry type com predomínio de aderências e fibrotic type com massas abdominais palpáveis que correspondem a espessamentos do epíploon e do mesentério com ascite loculada.4
Os sintomas sistémicos são comuns, estando a febre baixa presente em aproximadamente 59% dos casos, fazendo-se habitualmente acompanhar por sudorese noturna.2 Outras manifestações sistémicas incluem perda de peso, anorexia e mal-estar generalizado.5 A ascite é o achado predominante e está presente em cerca de 73% dos doentes.2
Neste caso, o doente apresentou-se com sintomas constitucionais com cerca de 3 meses de evolução, com ausência de febre, mas com sudorese noturna. É igualmente de destacar a presença de ascite, que constitui um sinal predominante desta patologia, tornando-se essencial o diagnóstico diferencial, sobretudo com carcinomatose peritoneal.
Em relação ao estudo microbiológico, devido à natureza paucibacilar da tuberculose peritoneal, o exame direto do líquido ascítico é positivo apenas em 3% dos casos.2 A cultura do líquido ascítico é um dos métodos considerados como gold standard para o diagnóstico de tuberculose peritoneal, sendo que a sua sensibilidade diagnóstica pode variar entre 43-83%.6-7 Atualmente, o teste que isoladamente apresenta maior sensibilidade diagnóstica para tuberculose peritoneal é a biópsia de peritoneu ou epiplon, permitindo um diagnóstico presuntivo em 85 a 95% dos casos.8
Apesar da cultura do líquido ascítico ser efetivamente um método gold standard para o diagnóstico de tuberculose, no caso apresentado revelou-se negativa. A biópsia do peritoneu e a cultura da amostra de epiplon mostraram-se essenciais neste caso para se chegar ao diagnóstico definitivo.
O teste IGRA baseia-se no facto das células T, presentes numa amostra de sangue, produzirem interferão y, quando previamente sensibilizadas e incubadas com antigénios específicos do M. tuberculosis.9 Neste caso, o teste IGRA ao revelar-se positivo, constituiu mais um dado a favor do diagnóstico de tuberculose peritoneal.
A PCR é um teste rápido que permite isolar Mycobacterium entre 24 a 48 horas, no entanto, apresenta uma baixa sensibilidade (60-80%).3 Neste caso, os autores tiveram a oportunidade de efetivamente comprovar esta baixa sensibilidade, uma vez que, o resultado deste teste foi negativo.
Em relação aos exames de imagem, a ecografia e TC abdominal são importantes meios complementares,10 apesar de não permitirem confirmar o diagnóstico de tuberculose abdominal. Os principais sinais na TC são ascite, gânglios linfáticos calcificados ou com centro hipodenso e margens hiperdensas, assim como, espessamento do mesentério e do epiplon.3 Desta forma, os achados imagiológicos descritos no caso clínico vão de encontro com a literatura.
Os autores propõem uma reflexão sobre o caso clínico apresentado, em que, numa fase inicial, os achados clínicos e imagiológicos mimetizavam uma carcinomatose peritoneal, no entanto, numa fase precoce da investigação, não se evidenciou doença oncológica. Na literatura, é possível encontrar alguns casos, em que a tuberculose peritoneal se apresentou como uma grande mimetizadora de outras patologias.11,12
Como tal, foi de extrema importância prosseguir com a investigação com o intuito de chegar ao diagnóstico correto. Ao longo da marcha diagnóstica, foi mesmo necessário recorrer à realização de biópsia de epiplon por via laparoscópica. Esta decisão veio a revelar-se fulcral, uma vez que, revelou a presença de doença granulomatosa não necrotizante, o que fez imediatamente pensar na possibilidade de tuberculose peritoneal. No entanto, a cultura em meio de Lowenstein Jensen veio a ser essencial para o estabelecimento do diagnóstico definitivo de Tuberculose peritoneal.
Outro dos aspetos que os autores gostariam de destacar foi a resposta favorável do doente com a instituição da terapêutica antibacilar. Caso alguma dúvida ainda persistisse, esta resposta contribuiria igualmente para demonstrar o diagnóstico definitivo.
Figura I

Estudo analítico inicial
Figura II

Cortes seriados de tomografia computorizada (TC) toraco-abdomino-pélvica. Na primeira imagem é possível visualizar múltiplas adenopatias, nomeadamente aorto-pul- monares. Na segunda e terceira imagem, destaca-se a presença de derrame peritoneal e espessamento do peritoneu com densificação difusa do grande epiplon.
Figura III

Estudo citoquímico do líquido pleural
Figura IV

Cortes seriados de tomografia por emissão de positrões (PET) abdominal. Em ambas as imagens é possível visualizar extensa densificação da gordura peritoneal com múltiplos espessamentos.
Figura V

Restante estudo complementar
BIBLIOGRAFIA
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