Introdução
A rutura esplénica espontânea (REE) associada à mononucleose infeciosa (MI) é rara e potencialmente fatal. Estima-se que ocorra em 1-2 pessoas em 1.000, sendo mais frequente nos homens (70%), e abaixo dos 30 anos. Ocorre habitualmente entre o décimo quarto dia e a oitava semana após início da sintomatologia típica da MI, surgindo raramente como manifestação inicial. A maioria (90%) dos casos resulta da infeção pelo vírus Epstein-Barr (EBV) pertencente à família Herpesviridae. Apenas 10% dos casos de MI não são causados pelo EBV, sendo o citomegalovírus (CMV), dos outros agentes possíveis, o mais frequente.1,2Na literatura atual, desde o ano 2000, estão descritos apenas 14 casos.
Caso Clínico
Apresentamos o caso de um doente de 28 anos, enfermeiro num serviço de Pediatria, que recorreu ao serviço de urgência por dor abdominal de início súbito, localizada ao hipocôndrio esquerdo, persistente, com 4 dias de evolução. Referia ainda febre, não quantificada, nos dias prévios ao início da dor abdominal. Negava outra sintomatologia como odinofagia, adenomegálias ou história de trauma. Negava ainda viagens recentes. Ao exame físico, apresentava-se eupneico, com temperatura timpânica 36,9oC, tensão arterial de 126/74 mmHg e frequência cardíaca de 85 batimentos/minuto. As mucosas estavam coradas e hidratadas. O abdómen era depressível, mas francamente doloroso à palpação do hipocôndrio esquerdo, sem reação peritoneal. Analiticamente destacamos 8.200x103 leucócitos/µL, com linfocitose de 57,7%, e 17% de linfócitos ativados, hemoglobina 14,7 g/dl, alanina aminotransferase 151,8 U/l, aspartato aminotransferase 90,1 U/L, lactato desidrogenase 482U/l, proteína C reativa 66,0 mg/l. Por agravamento das queixas abdominais, foi pedida tomografia computorizada (TC) abdominal e pélvica que revelou esplenomegália, área hipodensa periférica no terço médio do baço, hemorragia peri-esplénica e hemoperitoneu, sugerindo REE (Fig.1).
Foi feito estudo analítico com pesquisa de serologias virais que revelaram anticorpos IgM anti-CMV; a pesquisa de DNA deste vírus confirmou o diagnóstico com a existência de 14.134 cópias/ml. A pesquisa de outros vírus nomeadamente EBV, vírus de imunodeficiência humana, vírus da hepatite B e C, foi negativa.
Iniciou fluidoterapia com soro fisiológico e analgesia com paracetamol 1g tid. Durante o internamento, a pressão arterial, frequência cardíaca e temperatura corporal mantiveram-se dentro dos valores normais. O hematócrito permaneceu estável. Os parâmetros da química sérica, alanina aminotransferase, asparato aminotransferase e lactato desidrogenase sugeriam recuperação da lesão citológica provocada pelo vírus. Dado este curso benigno, optou-se por manutenção da estratégia conservadora, sem necessidade de intervenção cirúrgica com esplenectomia. Recebeu alta hospitalar ao décimo primeiro dia de internamento. Atualmente, em seguimento em consulta de infecciologia, não se assinalam presença de sequelas.
Discussão
Este caso exemplifica uma situação rara de uma infeção a CMV em imunocompetente cuja manifestação inicial é a dor abdominal devido a uma REE.
Efetuamos uma pesquisa da literatura para casos semelhantes. Utilizamos o termo de busca «“cytomegalovirus” and “spleen rupture” or “splenic rupture”» na Pubmed. Considerámos os casos documentados desde o ano 2.000 até à dada de redação deste manuscrito. A tabela 1 resume as características dos casos identificados.3-15
A infeção a CMV pode assumir quadros graves em indivíduos imunodeprimidos, contudo em imunocompetentes pode ser assintomática. Nos doentes imunocompetentes, quando sintomáticos, a MI é a síndrome mais comum. Caracteriza-se tipicamente por cansaço, febre, faringite, adenopatias, e linfocitose atípica. Comparativamente à MI causada pelo EBV, esta apresenta linfadenopatia menos pronunciada, discreta ou mesmo ausência de faringite e alterações das provas hepáticas. O diagnóstico pode ser feito com a identificação de anticorpos IgM para o CMV e confirmado pela quantificação do DNA viral. Analiticamente caracteriza-se por linfocitose absoluta com mais de 50% de células mononucleares e pela presença de mais de 10% de linfócitos atípicos numa amostra de sangue periférico. Estas alterações não são específicas para o agente etiológico. A REE é uma condição rara que pode ocorrer como complicação da MI em adultos jovens. Clinicamente, os doentes apresentam-se com dor abdominal intensa de início súbito que pode estar associada a omalgia esquerda ou direita por irritação diafragmática causada pela presença de sangue intraperitoneal. Sinais de hipovolémia e choque circulatório são menos frequentes, mas podem ocorrer numa forma mais grave. O diagnóstico é feito por TC e os achados incluem laceração, com hemorragia subcapsular e/ou intraperitoneal e esplenomegália. A abordagem da REE é a mesma independentemente da etiologia, sendo preferido o tratamento conservador. A esplenectomia está reservada para casos em que as complicações assumem maior magnitude nomeadamente com a presença de hemoperitoneu associado a instabilidade hemodinâmica e choque circulatório.2,4,11
Quadro I
Características de casos de REE a CMV encontrados na literatura
Autor, ano | Sexo / idade | Comorbilidades | Método de diagnóstico | Inclusões linfocitárias de CMV | Complicação da ruptura esplénica | Tratamento |
| | | | | | |
Ohtani et al, 2000 3 | M/27 | Insuficiência renal crónica | Ig/PCR | Não | Hemoperitoneu | Conservador |
Alliot et al, 2001 4 | F/41 | Laqueação de trompas | Ig/PCR | Sim | Não | Conservador |
Duarte et al, 2003 5 | M/24 | Não | Ig/PCR | Sim | Hemoperitoneu | Esplenectomia |
Gorgone et al, 2005 6 | M/26 | Não | Ig | Sim | Hemoperitoneu | Esplenectomia |
Amathieu et al, 2007 7 | F/60 | CREST | Ig/PCR | Sim | Paragem cardiorrespiratória | Esplenectomia |
Maillard et al, 2010 8 | F/22 | Anemia ferropénica | Ig/PCR/pp65 | Não | Não | Conservador |
Maillard et al, 2010 8 | M/29 | Enxaqueca, défice da piruvato cinase | Ig/PCR/pp65 | Não | Não | Conservador |
Brncic et al, 2010 9 | M/44 | Não | Ig | Não | Não | Conservador |
Maria et al, 2013 10 | F/17 | Não | Ig | Não | Hemoperitoneu | Esplenectomia |
Vidarsdottir et al, 2013 11 | F/53 | Doença de Graves | Ig/PCR | Não | Tromboembolismo | Conservador |
de Havenon et alt, 2014 12 | M/28 | Não | Ig/PCR | Não | Choque Circulatório | Esplenectomia |
Roche et al, 2014 13 | F/22 | Não | Ig | Não | Hemoperitoneu | Esplenectomia |
Glesner et al, 2015 14 | F/27 | Tetralogia de Fallot | Ig/PCR | Não | Hemoperitoneu Paragem cardiorrespiratória | Esplenectomia |
Farnell et al, 2019 15 | M/37 | Não | Ig/PCR | Sim | Choque Circulatório | Esplenectomia |
F – feminino; M – masculino; Ig – exame serológico baseado em anticorpos anti-citomegalovirus; PCR – pesquisa de ácidos nucleicos do citomegalovirus através da polymerase chain reaction.
Figura I

Tumografia computorizada abdominal a evidenciar rutura esplénica
Figura II

Tumografia computorizada abdominal a evidenciar rutura esplénica
BIBLIOGRAFIA
1. Aldrete JS. Spontaneous rupture of the spleen in patients with infectious mononucleosis. Mayo Clin Proc. 1992; 67:910-2. doi: 10.1016/s0025-6196(12)60835-0.
2. Bartlett A, Williams R, Hilton M. Splenic rupture in infectious mononucleosis: A systematic review of published case reports. Injury. 2016; 47:531-8. doi: 10.1016/j.injury.2015.10.071.
3. Ohtani H, Imai H, Komatsuda A, Wakui H, Miura AB. Hemoperitoneum due to acute cytomegalovirus infection in a patient receiving peritoneal dialysis. Am J Kidney Dis. 2000;36(6):E33. doi:10.1053/ajkd.2000.19850
4. Alliot C, Beets C, Besson M, Derolland P. Spontaneous splenic rupture associated with CMV infection: report of a case and review. Scand J Infect Dis. 2001;33(11):875-7. doi:10.1080/00365540110027114
5. Duarte PJ, Echavarría M, Paparatto A, Cacchione R. Ruptura espontánea de bazo asociada a infección activa por citomegalovirus. Medicina (B Aires). 2003;63(1):46-8.
6. Gorgone S, Praticò C, Di Pietro N, et al. Rottura spontanea di milza in presenza di infezione citomegalica. Descrizione di un caso clinico [Spontaneous splenic rupture in a patient with cytomegalovirus infection]. G Chir. 2005;26(3):95-9.
7. Amathieu R, Tual L, Rouaghe S, Stirnemann J, Fain O, Dhonneur G. Rupture spontanée de la rate au cours d´une infection à cytomégalovirus: cas clinique et revue de la littérature [Splenic rupture associated with CMV infection: case report and review]. Ann Fr Anesth Reanim. 2007;26(7-8):674-6. doi:10.1016/j.annfar.2007.03.037
8. Maillard N, Koenig M, Pillet S, Cuilleron M, Cathébras P. Spontaneous splenic rupture in primary cytomegalovirus infection. Presse Med. 2007;36(6 Pt 1):874-7. doi:10.1016/j.lpm.2007.02.014
9. Brncić N, Mijandrusić-Sincić B, Perić R, Milić S, Gorup L, Mazur-Grbac M. Splenic hematoma as a first manifestation of cytomegalovirus infection. Coll Antropol. 2010;34:267-9.
10. Maria V, Saad AM, Fardellas I. Spontaneous spleen rupture in a teenager: an uncommon cause of acute abdomen. Case Rep Med. 2013;2013:675372. doi:10.1155/2013/675372
11. Vidarsdottir H, Bottiger B, Palsson B. Spontaneous splenic rupture and multiple lung embolisms due to cytomegalovirus infection: a case report and review of the literature. Int J Infect Dis. 2014;21:13-4. doi:10.1016/j.ijid.2013.10.022
12. de Havenon A, Davis G, Hoesch R. Splenic rupture associated with primary CMV infection, AMSAN, and IVIG. J Neuroimmunol. 2014;272(1-2):103-5. doi:10.1016/j.jneuroim.2014.05.004
13. Roche M, Maloku F, Abdel-Aziz TE. An unusual diagnosis of splenic rupture. BMJ Case Rep. 2014. doi:10.1136/bcr-2014-204891
14. Glesner MK, Madsen KR, Nielsen JM, Posth S. Successful emergency splenectomy during cardiac arrest due to cytomegalovirus-induced atraumatic splenic rupture. BMJ Case Rep. 2015. doi:10.1136/bcr-2014-208094
15. Farnell R, Siow W, Bain BJ. Splenic rupture in cytomegalovirus infection. Am J Hematol. 2019;94(7):828-9. doi:10.1002/ajh.25449