INTRODUÇÃO
O delirium, particularmente no doente idoso, é um motivo extremamente frequente de recurso ao serviço de urgência e implica uma avaliação diagnóstica seriada, primariamente dirigida a detetar doenças sistémicas comuns, mas que não falhe em reconhecer causas menos frequentes, como as infeções do sistema nervoso central (SNC).1
As encefalites virais são entidades raras, com uma incidência estimada de 3,5 a 7,5 casos por ano por 100.000 indivíduos, embora este valor seja provavelmente subestimado devido à dificuldade diagnóstica inerente, incluindo a necessidade de isolamento de uma etiologia viral específica.2 Não obstante, são uma hipótese diagnóstica a considerar em qualquer doente que se apresente com cefaleia, convulsões, depressão do estado de consciência ou alterações comportamentais, tendo o diagnóstico precoce implicações terapêuticas e prognósticas.
Apresentamos um caso raro de uma encefalite viral causada pelo vírus Epstein-Barr (EBV), diagnosticada num doente idoso que se apresentou com um síndrome confusional com duas semanas de evolução.
CASO CLÍNICO
Doente do género masculino de 75 anos, natural de Angola mas a residir em Portugal desde 1976, autónomo nas atividades da vida diária. Dos antecedentes conhecidos a destacar hipertensão arterial essencial, obesidade, dislipidémia, esteatose hepática e hábitos etílicos ocasionais. Na sequência de uma rutura afetiva com sintomas depressivos associados e de insónia inicial, tinha sido recentemente medicado com mirtazapina 15 mg e midazolam 15 mg ao deitar.
Trazido ao serviço de urgência por quadro de confusão com duas semanas de evolução, apurando-se, após esclarecimento com familiares, comportamento bizarro, ideação suicida e a presença de ideias delirantes niilistas (de Cotard),3sem história de crises convulsivas ou registos de febre associados. À admissão no serviço de urgência o doente apresentava-se subfebril (temperatura timpânica de 37,8 ºC), eupneico e com saturações periféricas de O2 de 96 %, com frequência cardíaca de 80 batimentos por minuto e pressão arterial de 150/70 mmHg. À avaliação neurológica, encontrava-se orientado no tempo e na pessoa, mas desorientado no espaço, com atenção flutuante e não completamente fixável, ideias delirantes persecutórias e alucinações visuais, sem défices neurológicos focais.
Do estudo analítico (Fig. 1) apenas a destacar hiponatrémia (sódio 133 mEq/L) e hipocaliémia (potássio 3,1 mEq/L) ligeiras, proteína C reativa de 5,1 mg/L, sem leucocitose. O exame sumário da urina e o doseamento de tóxicos (etanol, benzodiazepinas e opiáceos) não apresentavam alterações. A TAC crânio-encefálica mostrou apenas pequenas hipodensidades capsulares internas bilateralmente, não recentes, não explicativas do quadro clínico. Durante a avaliação complementar, foi avaliado pela Neurologia e Psiquiatria, que corroboraram a hipótese diagnóstica de quadro de delirium de etiologia a esclarecer, tendo o doente ficado internado para estudo.
Durante o internamento, realizou estudo analítico de causas reversíveis de demência (Fig. 1) com serologias deHIV e VDRL negativos, TSH e doseamento de B12 normais, com défice ligeiro de ácido fólico (2,63 ng/ml). Iniciou reposição de ácido fólico, bem como suplementação de tiamina.
Na ausência de etiologia definida foi realizada punção lombar (PL), com saída de líquor cristal de rocha, com 2 células, sem predomínio celular definido, normoglicorráquia e hiperproteinorráquia ligeira de 48,59 mg/dL (Fig. 2). Apesar de apresentar líquor sem características patológicas, iniciou terapêutica empírica com aciclovir na dose de 10mg/kg de 8/8h, ficando a aguardar resultados do exame bacteriológico e da PCR de Herpesvírus no líquor. Realizou adicionalmente eletroencefalograma (EEG), que apenas mostrou lentificação ligeira e difusa da electrogénese, etiologicamente inespecífica, sem focos de atividade paroxística. Verificou-se boa evolução clínica, com resolução progressiva quadro confusional a partir do 3º dia de internamento. Para melhor caracterização realizou ressonância magnética crânio-encefálica (RM-CE) ao 5º dia de internamento, com identificação de focos de hipersinal em T2 subcorticais bihemisféricos cerebrais, inespecíficos.
Ao 8º dia de internamento a pesquisa por PCR de vírus no líquor mostrou positividade para EBV (4410 cópias/µL) e foi negativa para outos Herpesvírus. Nesse contexto, foi admitido o diagnóstico de encefalite viral a EBV, e, face à exclusão de encefalite herpética e à melhoria clínica, foi suspensa terapêutica com aciclovir. Subsequentemente foram obtidas serologias para o EBV, com anticorpo Anti-EBV EBNA positivo e Anti-EBV VCA IgM negativo, pelo que se admitiu reativação viral no SNC, num doente com infeção latente a EBV.
O doente teve alta ao 13º dia de internamento, apresentando um discurso orientado e sem qualquer alteração neurológica focal ou do nível de consciência. À reavaliação clínica, um mês após a alta, apresentava-se totalmente assintomático.
DISCUSSÃO
A encefalite corresponde a um processo inflamatório do encéfalo associado a disfunção neurológica. Embora a definição seja estritamente anátomo-patológica, na prática o diagnóstico é feito através de marcadores indiretos de inflamação no líquor ou nos exames imagiológicos.4
As infeções virais permanecem a ser a causa mais frequente de encefalite. Entre os agentes associados, o vírus Herpes Simplex 1 (HSV 1) continua a ser a causa mais comum de encefalite viral nos países desenvolvidos e apresenta terapêutica específica com aciclovir, eficaz na melhoria do seu prognóstico, historicamente devastador.4,5 São também agentes frequentes os vírus Varicela-Zoster e os enterovírus, devendo ser considerados outros agentes em contextos epidemiológicos de viagem recente, imunossupressão ou não vacinação.4
A realização de uma PL é essencial ao diagnóstico, devendo ser considerada precocemente em qualquer doente que se apresente com febre e alteração do estado mental. São sugestivos de infeção viral pleiocitose linfocítica (5-200 células/mm3) e hiperproteinorráquia ligeira (50-100 mg/dl), com rácio de glicose líquor/soro normal.4,6 Não obstante, em 5 a 10% dos casos, o líquor não apresenta alterações significativas, como ocorreu neste doente.4,7 Igualmente fulcral é a instituição imediata de aciclovir nos doentes com suspeita do diagnóstico, até que possa ser excluída com confiança a infeção por HSV1, o que muitas vezes requer a repetição de punção lombar em doentes com clínica inferior a 72 horas.4
O Epstein-Barr é um herpesvírus de distribuição ubíqua, infetando mais de 95 % da população adulta.8 Após a infeção aguda, habitualmente em idade jovem e causando os sintomas de mononucleose, permanece uma infeção latente associada a reativações, que podem variar desde assintomáticas a fatais. Está associado, em todas as fases da doença, a uma miríade de quadros neurológicos, incluindo meningite, encefalite, cerebelite, mielite, lesões de pares cranianos e síndromes psiquiátricos. Tem um papel melhor estabelecido como agente patológico em doentes imunodeprimidos, em que se associa a doença linfoproliferativa sistémica ou do SNC.10
O EBV é uma causa rara de encefalite no doente imunocompetente, produzindo geralmente um quadro clínico ligeiro e autolimitado, sendo frequentemente detetado no líquor em simultâneo com infeções agudas do SNC.11,12 Por conseguinte o diagnóstico requer a documentação de replicação do DNA do EBV no líquor, bem como a exclusão de outros agentes etiológicos, como realizado no caso apresentado.
No tocante à avaliação complementar, estão descritas, como alterações imagiológicas associadas, áreas de hiperintensidade multifocais em T2 e FLAIR, afetando os núcleos da base e a substância branca subcortical.13 No EEG, o padrão mais frequente de apresentação corresponde a uma lentificação focal ou difusa da electrogénese, sem actividade paroxística, estando não obstante descritos casos com padrão de atividade temporal característicos de encefalite herpética.14
O tratamento da encefalite a EBV é essencialmente de suporte, face ao habitual bom prognóstico. O aciclovir endovenoso e o seu pré-fármaco oral valaciclovir demonstraram atividade in vitro na inibição DNA polimerase viral e diminuição transitória da libertação do vírus em indivíduos com infeção aguda, porém sem melhoria dos outcomes clínicos.10 No contexto da encefalite, estes fármacos não se encontram convenientemente estudados e não são recomendados nas guidelines mais atuais.8,10 Existem, porém, relatos de caso que advogam a sua eficácia em casos graves, em que a terapêutica de suporte foi insuficiente. Nestes casos, a corticoterapia poderá ter um papel coadjuvante.10,15
O estudo serológico de EBV, pela positividade de anticorpos Anti-EBNA sugere uma infeção prévia por EBV, reativada no SNC.9 Não se apurou evidência clínica ou laboratorial de imunossupressão ou de outro fator precipitante da replicação viral, bem como de complicações sistémicas da reativação do EBV.
Por fim, salientamos o interesse do presente caso por, apresentando uma causa rara de encefalite viral num doente imunocompetente, ser também elucidativo quanto à importância da suspeita ativa de encefalite infeciosa no contexto de
delirium sem causa evidente, da realização atempada de PL e da instituição de terapia profilática até exclusão de causa herpética.
Figura I

Principais resultados analíticos
Figura II

Resultados da punção lombar
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