Introdução
A acidose láctica induzida por salbutamol é um fenómeno que raramente é reconhecido e formalmente estabelecido o seu diagnóstico e relação causa-efeito. Os primeiros relatos de hiperlactatemia ao salbutamol datam de 1970.1 O salbutamol é um broncodilatador agonista beta adrenérgico de curta duração de escolha em doentes com patologia pulmonar e em ambiente de cuidados intensivos. A acidose láctica induzida por salbutamol já foi reportada em relatos clínicos, nomeadamente em doentes asmáticos tratados com salbutamol por via inalatória que desenvolveram acidose metabólica sem outra causa e cuja lactatemia normalizou após suspensão do fármaco.2,3 Classifica-se a acidose láctica em tipo A ou B de acordo com a presença ou ausência, respetivamente, de hipoxia tecidular. Por outras palavras, a acidose láctica de tipo A traduz doença e tem causas potencialmente ameaçadoras da vida requerendo optimização imediata da perfusão (reposição volémica ou vasopressores), ao passo que a tipo B tem globalmente causas benignas (iatrogenia a fármacos, perturbação da clearance). Em vários estudos, valores de lactato superiores a 2 mmol/L estão inequivocamente associados a taxas de mortalidade intra-hospitalar mais elevadas, tanto em situação clínica de foro médico como traumático, pelo que a avaliação do lactato é um importante preditor de prognóstico.4
Reporta-se o caso de uma doente em unidade de cuidados intensivos com acidemia metabólica associada a hiperlactatemia, sob terapêutica inalatória com salbutamol e revertida após a sua suspensão. Destaca-se a importância de considerar esta etiologia entre os diagnósticos diferenciais de hiperlactatemia, sobretudo em doentes com risco de evolução em sépsis/choque séptico ou outras causas ameaçadoras de vida.
Case report
Reporta-se o caso de uma doente de 67 anos, hipertensa, com excesso de peso, medicada de longa data em ambulatório com um antagonista de recetores de angiotensina e diurético tiazídico. Esta doente não apresentava antecedentes de patologia respiratória. Recorreu ao Serviço de Urgência por tosse seca e anosmia com 24 horas de evolução, apresentando o resultado de zaragatoa orofaríngea de SARS-CoV2 em ambulatório positiva (exposição prévia a convivente doente). Ao exame objetivo encontrava-se apirética, hemodinamicamente estável, polipneica (frequência respiratória 24 cpm) sem qualquer outro achado relevante ao exame objetivo. Apresentava insuficiência respiratória tipo 1 (com FiO2 21%: pH 7,47; pCO2 34 mmHg; pO2 59 mmHg; Lact 0,6 mmol/L; HCO3- 24,7 mmol/L SatO2 92%). Destaca-se a inexistência de hiperlactatemia ou sinais de má perfusão periférica à admissão (tempo de preenchimento capilar inferior a dois segundos). Ao longo da avaliação no serviço de urgência verificou-se uma necessidade de incremento gradual de oxigénio, tendo sido admitida em unidade de cuidados intensivos. Evoluiu com agravamento da insuficiência respiratória nas primeiras 24 horas de internamento, culminando em necessidade de ventilação mecânica invasiva. Atribuiu-se a disfunção respiratória à infeção por SARS-CoV2, associada a sobreinfeção respiratória bacteriana, tendo sido iniciada terapêutica com ceftriaxone empírico associado a azitromicina e hidroxicloroquina (intervalo QT corrigido 355 milissegundos pela fórmula de Bazett). Neste período reforçou-se a terapêutica inalatória broncodilatadora com salbutamol (suspensão pressurizada de 6 puffs 100 ug/dose de 6 em 6 horas). Após início dessa terapêutica inalatória verificou-se uma subida progressiva de lactatos (lactacidemia máxima: 5,7 mmol/L) e acidemia metabólica. A doente encontrava-se sob sedação com midazolam e bem adaptada a ventilação mecânica invasiva. Nenhum outro fármaco reconhecidamente indutor de hiperlactatemia se encontrava prescrito. Não foram registadas tomas de acetaminofeno nas primeiras 40 horas de internamento nem se encontravam prescritos corticóides ou metilxantinas. Realizada ecoscopia cardíaca sumária, observou-se uma adequada função biventricular e veia cava inferior com reduzida variabilidade, tradutora de um provável adequado preenchimento volémico (contudo com as limitações inerentes à avaliação deste parâmetros em doente sob ventilação mecânica invasiva ainda que realizado sob modo ventilatório volume-controlado). Simultaneamente, nesta doente a hiperlactatemia não se acompanhou de necessidade de subida de suporte aminérgico (dose máxima de noradrenalina: 0,2 ug/kg/min), aumento do tempo de preenchimento capilar ou redução do débito urinário, apesar de sinais de má perfusão periférica dos membros inferiores (mottling score = 1). Realizada tomografia computorizada toraco-abdomino-pélvica que excluiu qualquer complicação vascular, nomeadamente tromboembolismo pulmonar ou isquemia intra-abdominal. Atendendo à ausência de outro motivo evidente para a hiperlactatemia além da iatrogenia farmacológica, optou-se por suspensão das inalações de salbutamol, com redução progressiva subsequente da lactacidemia atingindo 0,5 mmol/l após 24 horas da suspensão do fármaco. (ver Fig. 1)
Discussão
Diversos mecanismos podem encontrar-se na fisiopatologia da acidose láctica, nomeadamente: a activação acrescida da glicólise (induzida por fármacos como salbutamol, adrenalina, ou tóxicos como a cocaína); a perturbação do complexo desidrogenase do piruvato (por défice de tiamina, por exemplo); o insuficiente fornecimento de O2 para suprir as necessidades teciduais (como na hipovolemia, intoxicação por dióxido de carbono ou durante o exercício físico intenso); a perturbação da fosforilação oxidativa no ciclo de Krebs (intoxicação por salicilatos, metformina) e o défice no clearance de lactato (insuficiência renal/hepática).2
A glicólise produz piruvato que, aquando da saturação das vias de degradação aeróbia, é metabolizado em lactato por via anaeróbia em vez de convertido em acetilcoenzima A pela via aeróbia habitual da respiração celular. Desde a classificação de Cohen e Woods (1976) que a acidose láctica se divide classicamente em tipo A e tipo B de acordo com a via predominante de degradação do piruvato: na acidose láctica tipo A predomina a glicólise anaeróbia (associada a estados de choque, hipóxia e hipoperfusão tecidular); a acidose láctica tipo B refere-se a um acúmulo de lactato sob condições aeróbias. 5,6 A acidose láctica tipo B subclassifica-se ainda em B1 (associada a patologia subjacente como linfoma, falência hepática, défice de tiamina), B2 (associado a fármacos/toxinas, como no uso de beta-agonistas) e B3 (associado a defeitos metabólicos congénitos).5
A par da utilização da lactatemia como indicador de hipoxia tecidular na fase inicial de ressuscitação em doentes em choque tem sido utilizada a saturação venosa central de oxigénio (ScvO2) uma vez que valores elevados de ScvO2 associam-se a incremento na mortalidade nestes doentes. Constituem limitações do uso da lactactemia e ScvO2 o facto de nem sempre representarem hipoperfusão tecidular persistente, podendo apenas traduzir uma situação em que a normalização destes parâmetros é uma questão de tempo.7 Não deverá ser também menosprezado o “wash-out” de lactato que ocorre após a fase de ressuscitação volémica, fenómeno frequentemente documentado em situações de doente crítico (com subida transitória de lactatemia, sem que isso traduza agravamento clínico).8
Atendendo a estes fatores, alguns autores têm sugerido a utilização do ratio entre a diferença CO2 venoso-arterial central e a diferença O2 arterio-venosa central [PcvaCO2/(CavO2)] como um parâmetro melhor tradutor do metabolismo anaeróbio celular.9 No presente caso, e atendendo às condições especiais pandémicas em que decorreu o mesmo, não se encontram disponíveis dados de pressões O2/CO2 de sangue venoso central que nos permitam o cálculo de ScvO2 e PcvaCO2/(CavO2). Assim, o raciocínio clínico exposto versa essencialmente sobre a evolução da lactactemia e sua importância prognóstica desde que associada a outros fatores clínicos e laboratoriais (situação frequente no quotidiano do médico internista fora do ambiente de cuidados intensivos).
A hiperlactatemia atribuível ao salbutamol induz uma acidose láctica tipo B2 e habitualmente verifica um rápido clearance após suspensão. Destaca-se o facto de frequentemente se encontrarem presentes vários mecanismos indutores de hiperlactatemia no mesmo doente, o que traduz um claro desafio no diagnóstico diferencial.10,11 O caso apresentado destaca o racional clínico no percurso diagnóstico numa doente em ambiente de cuidados intensivos, com a sucessiva exclusão das potenciais causas associadas, com um elevado impacto no prognóstico e sobrevivência da doente. Neste caso, a terapêutica inalatória com salbutamol poderá ter contribuído como fator indutor possível para a acidose láctica verificada ou, pelo menos, poderá ter concorrido com outros fatores para a hiperlactatemia. Efetivamente os dados disponíveis permitem-nos relembrar que os beta-agonistas enquanto classe farmacológica, independentemente da forma de administração, devem ser equacionados quando perante lactactemia de etiologia não esclarecida.
A deteção precoce da etiologia da hiperlactatemia é de importância major sobretudo em doentes graves como os admitidos em unidades de cuidados intensivos.12 O salbutamol inalatório é uma causa frequentemente esquecida de acidose láctica e não deve ser menosprezada. No entanto, trata-se de um diagnóstico de exclusão, implicando um raciocínio clínico eficaz em afastar a possibilidade de todas as situações ameaçadoras de vida, que condicionem hipoxia celular.
Figura I

Evolução temporal do equilíbrio ácido-base em função da administração de salbutamol inalatório (cada administração de 6 puffs 100 ug salbutamol encontra-se representado no gráfico com *).
BIBLIOGRAFIA
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