Introdução
A vasculite a IgA, anteriormente designada púrpura de Henoch-Schönlein, é uma vasculite de complexos imunes que afeta predominantemente pequenos vasos.1O espetro clínico inclui púrpura palpável sem trombocitopenia, artralgias e/ou artrite, enterite aguda e glomerulonefrite.1Apesar de ser a vasculite sistémica mais frequente nas crianças com uma incidência anual estimada em 3-26 casos por cada 100.000 indivíduos2, é uma entidade rara em adultos não ultrapassando os 1.8 casos por cada 100.000 indivíduos.3O envolvimento abdominal e renal representam as principais causas de morbilidade e mortalidade. Embora a sua causa permaneça largamente desconhecida, está descrito um papel central para o sistema IgA.4A síntese aumentada de IgA pode dever-se á exposição a antigénios de origem bacteriana, vírica ou parasítica processados pelo sistema imunitário.5Também o património genético contribui para a fisiopatologia através de genes de suscetibilidade pertencentes ao sistema de antigénios leucocitários humanos.6Além da vasculite a IgA “primária”, uma minoria de casos em adultos (<5%) tem relação com a existência de neoplasia concomitante, em particular do pulmão.7Por outro lado, a prevalência de neoplasia em doentes adultos com diagnóstico de vasculite por IgA situa-se entre os 29-43%.3
Caso clínico
Sexo masculino, 56 anos, leucodérmico, com antecedentes de tabagismo (~40UMA), acorreu ao serviço de urgência apresentando quadro com cerca de 10 dias de evolução. Referida dor inicialmente epigástrica, com evolução para dor abdominal difusa acompanhada de vómitos, dejeções diarreicas (>6 por dia), sanguinolentas e lesões purpúricas restritas aos membros inferiores. Neste contexto tinha já sido observado previamente no serviço de urgência tendo sido medicado com inibidor da bomba de protões, pró-cinético e ciprofloxacina, com diminuição do número de dejeções e persistência da restante sintomatologia. Acrescia anorexia e noção de perda ponderal não quantificada desde início do quadro. Na anamnese foi excluída potencial etiologia infeciosa, alérgica ou química nomeadamente sob a forma de fármacos além dos prescritos no contexto do quadro descrito. Ao exame objetivo o doente apresentava hipotensão ligeira com taquicardia, abdómen distendido e discretamente timpanizado, ruídos hidroaéreos escassos, sem sinais de irritação peritoneal. Mantinha ainda púrpura confluente e palpável nos membros inferiores, com noção de agravamento (Figura 1). No estudo analítico sem alterações no hemograma ou da coagulação com um doseamento de IgA e IgG dentro dos limites da normalidade. Da análise bioquímica salienta-se hiponatrémia hipoosmolar com líquido extracelular diminuído (Na+ 122mmol/L) assumida em contexto de perdas por via intestinal. A análise sumária da urina não apresentava qualquer alteração nomeadamente proteinúria ou hematúria. Realizou tomografia toraco-abdomino-pélvica a documentar espessamento difuso da parede de grande parte das ansas jejunais e ileais, sem outras alterações de relevo a nível abdominal. Identificou, contudo, uma volumosa lesão nodular sólida de contornos espiculados no segmento posterior do lobo superior direito, identificável também em radiografia pulmonar, com 48 x 39 mm no plano axial, sugestiva de lesão expansiva e ainda lesão satélite com 20 mm (Figura 2).
Pela persistência de sintomatologia associada a alterações hidroelectrolíticas e dada a suspeita de neoplasia pulmonar optou-se pelo internamento em enfermaria para compensação, vigilância clínica e estudo etiológico. No internamento procedeu-se a broncofibroscopia com citologia a confirmar neoplasia primária do pulmão. Para estadiamento foi realizada tomografia por emissão de positrões sendo evidenciadas, além das formações nodulares já descritas, metástases ganglionares paratraqueais à direita (Figura 3). De referir ainda foco de hiperfixação no cólon sigmóide que posteriormente se confirmou corresponder a lesão polipóide, sem características de malignidade.
Do estudo complementar salienta-se também a biópsia cutânea das lesões purpúricas cuja análise histológica demonstrou uma derme com lesões de vasculite leucocitoclástica, compatível com o diagnóstico de vasculite a IgA. Por razões técnicas não foi possível a realização de estudo imunohistoquímico.
Importa salientar que o estudo bacteriológico e virológico se revelou negativo. De igual forma, outros marcadores de vasculite apresentaram valores negativos nomeadamente a estreptolisina, fator reumatóide, anti-péptido citrolinado, anticorpo anti-nuclear, anti-fosfolipídicos, anticoagulante lúpico, anticorpo citoplasmático antineutrófilo, crioglobulina ou reagina plasmática rápida.
Dada a persistência dos sintomas foi instituída corticoterapia sistémica com prednisolona na dose de 1mg/kg/dia e fluidoterapia endovenosa verificando-se melhoria progressiva até resolução completa dos sintomas gastrointestinais e dos sinais cutâneos. O doente foi encaminhado para o centro de referência para tratamento oncológico. O estudo complementar confirmou um adenocarcinoma TTF1 positivo, PD-L1 positivo (60-70%), com estudo genético sem variantes preditivas de resposta a terapêuticas dirigidas no carcinoma do pulmão. Iniciou tratamento combinado de quimio e radioterapia e posteriormente imunoterapia com durvalumab dada positividade para PD-L1 e ausência de progressão sob quimio e radioterapia. Mantém atualmente seguimento no referido centro.
Discussão
A vasculite a IgA, anteriomente designada púrpura de Henoch-Schonlein é uma forma de vasculite idiopática que afecta a pequena vasculatura e manifesta-se de forma sistémica com preponderância a nível cutâneo, gastrointestinal, renal e articular.8Os critérios de classificação para o diagnóstico de vasculite por IgA têm sido alvo de alterações por várias entidades tendo os mais recentes sido definidos pelaEuropean League Against Rheumatism(EULAR). A classificação de vasculite por IgA exige a observação uma púrpura palpável, não trombocitopénica com pelo menos um dos seguintes: 1) dor abdominal difusa; 2) vasculite leucocitoclástica com depósitos predominantes de IgA ou glomerulonefrite proliferativa com depósitos predominantes de IgA; 3) artrite ou artralgias, e 4) envolvimento renal (proteinúria >0.3g/24h ou > 30mmol/mg de rácio albumina/creatinina urinária; e/ou hematúria (>5 eritrócitos por campo ou ≥2+ em teste combur).9
O caso clínico apresentado reúne, além da púrpura, dois dos quatro critérios adicionais embora um deles esteja apenas parcialmente cumprido dado não ter sido possível confirmar a existência de depósitos de IgA. Apesar disso, está descrito que a nível cutâneo a deposição de complexos IgA está presente em apenas 70% dos casos, em contraste com a deposição generalizada que se verifica a nível renal.10No que concerne ao doseamento sérico de IgA, o doente apresentava níveis dentro dos limites da normalidade. Está descrito que valores de IgA acima do normal são encontrados apenas em parte dos doentes sendo a percentagem significativamente inferior quando há envolvimento gastrointestinal11, como acontece no caso descrito. As vasculites enquanto manifestação paraneoplásica representam 2.5-5% do número total de vasculite em adultos.7Destes, a vasculite a IgA é responsável por apenas 5%.12No entanto, a prevalência de neoplasia entre doentes com diagnóstico de vasculite em idade adulta é elevada, estimando-se entre 29-43%.4Verifica-se mais tipicamente associada a tumores sólidos como o do pulmão.13Contudo, e segundo o nosso conhecimento, este é o primeiro relato de vasculite a IgA enquanto primeira manifestação clínica, paraneoplásica, de adenocarcinoma do pulmão.
São várias as teorias que tentam explicar o fenómeno da vasculite a IgA enquanto manifestação paraneoplásica. Uma das etiologias possíveis é a diminuição da eliminação e aumento da produção de complexos imunes (incluindo anticorpos IgA e antigénios tumorais) conduzindo à sua deposição nas paredes vasculares e mesângio. Foi sugerido também que a viscosidade sanguínea aumentada pode contribuir para o depósito de complexos imunes das paredes vasculares.14Outros autores teorizam ainda que as células tumorais podem reagir com antigénios nas células endoteliais vasculares lesando as paredes vasculares.14
Relativamente à causa da vasculite no caso apresentado, o doente não apresentou sintomatologia que pudesse relacionar-se infeção prévia nem apresentava contexto alérgico ou químico (incluindo farmacológico) para a etiologia do quadro. Dada a ausência de outros marcadores imunológicos considerou-se que a etiologia mais provável seria a paraneoplásica.
A vasculite a IgA tem geralmente um bom prognóstico pelo que o tratamento é frequentemente sintomático. Contudo, o diagnóstico é crucial dado que aproximadamente 30% dos doentes com instalação na idade adulta apresentam sintomas gastrointestinais e estão em risco para complicações significativas com impacto na morbimortalidade da vasculite como é o caso de perfuração intestinal, enterocolite necrotizante e hemorragia gastrointestinal.15Nestas situações bem como no acometimento renal severo a corticoterapia tem sido apresentada como uma terapêutica com bons resultados.13No entanto, o seu uso bem como o uso de imunossupressores é controverso pela falta de evidência inequívoca que demonstre melhoria do prognóstico a longo prazo. São ensaios clínicos prospectivos, randomizados e controlados de forma a avaliar o risco-benefício de tais tratamentos.4
Conclusão
A vasculite a IgA é uma entidade clínica rara enquanto manifestação paraneoplásica. Embora existam relatos de associação com adenocarcinoma pulmonar, este é o primeiro enquanto forma de apresentação clínica inicial de adenocarcinoma pulmonar. A presente descrição alerta para a necessidade de excluir uma neoplasia quando um indivíduo adulto apresenta sinais e sintomas compatíveis com o diagnóstico de vasculite a IgA.
Figura I

Figura 1. Lesões purpúricas nos membros inferiores no primeiro dia de internamento, antes da instituição de corticoterapia.
Figura II

Figura 2. Lesão nodular de 48 x 39 mm no plano axial, localizada no lobo superior direito e lesão satélite com 20 mm em radiografia e tomografia torácica.
Figura III

Figura 3. PET-FDG a documentar fixação na neoplasia pulmonar direita e metástases ganglionares paratraqueais direitas. De referir ainda foco de hiperfixação no cólon sigmóide a corresponder a pólipo sem características de malignidade.
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