Introdução
A Síndrome de Dor Regional Complexa (SDRC) é uma síndrome de dor músculo-esquelética rara,1 previamente designada de Algoneurodistrofia.1-3 Caracteriza-se por dor neuropática na região distal de um membro2,4 sem distribuição por um dermátomo.3-5 Associa-se a edema, alterações vasomotoras e cutâneas, desmineralização óssea e impotência funcional.4 É 3 a 4 vezes mais frequente nas mulheres,2,4 com pico de incidência entre os 50 e os 70 anos de idade.2-3 Decorre de um processo multifatorial pouco esclarecido,1 envolvendo mecanismos periféricos e centrais, sendo a base a resposta inflamatória excessiva.2,4,6 Outros mecanismos propostos são isquemia local, stress oxidativo, sensibilização central e periférica, alteração da resposta autonómica simpática e fatores genéticos e psicológicos.2,4 Nos adultos é tipicamente precedida por um trauma (traumatismo local ou cirurgia), sendo a SDRC espontânea rara (< a 10%).7 A exclusão exaustiva dos diagnósticos diferenciais deve ser realizada.5
O objetivo deste trabalho é apresentar o caso de uma mulher com SDRC, enfatizando a dificuldade diagnóstica e do controlo sintomático.
Caso clínico
Mulher de 77 anos de idade, caucasiana, com antecedentes de insuficiência cardíaca (IC), fibrilhação auricular, dislipidemia e hipertensão arterial. Em 2016 recorreu ao médico assistente por quadro de dor e edema da articulação tibio-társica direita após traumatismo local, não se detetando sinais de fractura em exame radiológico convencional (Fig. 1). Apesar da terapêutica local com gelo e anti-inflamatórios não esteróides (AINE) orais, verificou-se agravamento progressivo da dor, de intensidade moderada a severa. Recorreu a várias especialidades médicas e cirúrgicas, sem diagnóstico estabelecido e sem melhoria sintomática, apesar da terapêutica continuada com Nimesulida 100 mg, duas vezes ao dia e Pregabalina 75 mg, duas vezes por dia. Dois anos depois referia manter dor constante de intensidade moderada, tipo “queimadura”, “em meia” até à metade distal da perna, negando hiperalgesia ou alodinia, a condicionar limitação física edo desempenho dasatividades de vida diária. Ao exame objetivo, apresentava humor triste e edema, eritema e calor da perna direita, associados a cianose dos dedos e planta do pé (Fig. 2). O pulso pedioso era amplo e simétrico, com reflexos osteo-tendinosos dos membros inferiores normais e simétricos. Do estudo realizado, sem alterações do hemograma, função renal, hepática e do metabolismo fosfo-cálcio, velocidade de sedimentação, proteína C reativa, estudo imunológico e serologias (VIH, VHB e VHC, CMV, EBV). A ecografia dos tecidos moles evidenciava “edema dos tecidos moles subcutâneos” e o eco-doppler venoso ausência de sinais compatíveis com trombose venosa profunda. O eco-doppler do território arterial revelava sinais de aterosclerose periférica, não condicionando diminuição significativa do fluxo. Posteriormente, realizou cintigrafia óssea com hipercaptação numa área superior à atingida pelo traumatismo. Assim, de acordo com os Critérios de diagnóstico de Budapeste, a par dos achados imagiológicos sugestivo, foi assumido o diagnóstico de SDRC.
A doente iniciou capsaícina tópica, complicada por queimadura local e a dose de Pregabalina foi aumentada. Cerca de 6 meses depois, manteve dor não controlada, referindo agravamento da limitação funcional e do humor depressivo. A posologia de Pregabalina foi novamente incrementada (total diário de 400 mg), iniciou terapêutica com amitriptilina 10 mg/dia e lidocaína tópica a 5% e sessões diárias de fisioterapia. Após uma semana, a doente apresentou alguma melhoria das queixas, mantendo, no entanto, incapacidade de deambulação, insónia e sintomatologia depressiva importante. A doente veio a falecer semanas mais tarde.
Figura 1 – Radiografia simples das pernas da doente, sem alterações de relevo.
Figura 2 – Membro inferior direito, a evidenciar edema e eritema da perna, associada a cianose dos dedos do pé direito.
Discussão
A SDRC pode apresentar-se de forma variável,7,8 requerendo a presença de sintomas referidos pelo doente e sinais ao exame objetivo, dentro das seguintes categorias: sensitiva, vasomotora, sudo-motora e trófica.2,3,5 Pode ser diferenciada entre tipo 1, sem lesão nervosa identificada ou tipo 2, com lesão nervosa, confirmada com o auxílio da eletromiografia.3,5 O sintoma chave é a dor severa prolongada no tempo, descrita como sensação de “queimadura” ou de “formigueiro”. A hiperalgesia e/ou alodinia estão frequentemente presentes. Ao exame objetivo, o membro afetado pode apresentar-se quente ou frio e edemaciado, quando comparado com o membro contralateral, com coloração desde avermelhada a arroxeada.10,11 Nos adultos, afeta predominantemente a zona distal do braço, com um número reduzido de casos descritos nos membros inferiores.1,4
O diagnóstico é clínico e de exclusão, sustentado nos Critérios de Budapeste da International Association for the Study of Pain (IASP) (Tabela 1).10 Não existem exames complementares com valor diagnóstico. A cintigrafia óssea de três fases pode evidenciar alterações do metabolismo ósseo, nomeadamente sinais de desmineralização óssea, no entanto a sua sensibilidade é baixa.7 Os exames complementares são de extrema importância essencialmente para exclusão de outros diagnósticos, como sinovite, infeção ou tumores.5
Tabela 1. Critérios de diagnóstico de Budapeste. A negrito encontram-se os sinais e sintomas do caso clínico reportado. Adaptado de Harden RN et al, Pain 2010.
No presente caso, o diagnóstico foi estabelecido baseado na história, sintomas e sinais da doente e suportado em alterações sugestivas da cintigrafia óssea. O trauma local foi identificado como o agente causal. De particular, referir a localização no membro inferior, menos frequente. O restante estudo permitiu a exclusão de trombose venosa profunda, doença arterial periférica, infeção, doença auto-imune ou neoplasia.
Esta síndroma exige a necessidade de uma abordagem individualizada associada ao início célere do tratamento, particularmente nos casos de dor crónica instituída.5,10 As medidas terapêuticas devem incluir as farmacológicas, com aumentos sucessivos de dose e associação de fármacos, (AINE, esteróides, opióides, anticonvulsivantes e antidepressivos, bifosfonatos, capsaicina e lidocaína tópicas); para além da reabilitação funcional e terapia cognitivo-comportamental.5,10-12 Pode incluir, também, alguns métodos invasivos (bloqueio simpático, neuro modulação).4,5 As opções terapêuticas são limitadas4 e carecem de evidência de benefício na SDRC em estudos controlados e randomizados.2,5
Nos idosos, o prognóstico é reservado e a SDRC pode causar dor severa e incapacidade funcional, apesar de todas as medidas preconizadas.12
O facto de a comunidade médica estar pouco sensibilizada para esta doença, aliada à necessidade de excluir outras hipóteses diagnósticas, fez com que no caso clínico apresentado o diagnóstico e tratamento tenham sido tardios. A doente apresentou dor constante e intensa, refratária às medidas instituídas, com afetação psicológica e social importante.
Figura I

Membro inferior direito, a evidenciar edema e eritema
Figura II

Membro inferior direito, a evidenciar edema e eritema da perna, associada a cianose do dorso e dedos do pé direito.
Figura III

Tabela 1: Critérios de diagnóstico de Budapeste. A negrito encontram-se os sinais e sintomas do caso clínico reportado. Adaptado de Harden RN et al, Pain 2010.
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