INTRODUÇÃO
O carcinoma anaplásico da tiróide é raro e representa < 2% das neoplasias da tiróide.1 Tem uma incidência de 1/2 casos por 1000 000 de indivíduos, sendo que 70% ocorrem no sexo feminino em idade superior a 65 anos.1-3
Frequentemente incide em indivíduos com história pregressa de patologia tiroideia e em áreas de bócio endémico.1Cerca de 40% dos casos estão associados a antecedentes ou ocorrem de forma síncrona a carcinoma diferenciado da tiróide, sendo os carcinomas papilares e de células de Hurthle os tipos histológicos mais frequentes.1
Estes carcinomas estão frequentemente associados a mutações inativadoras do gene p53. A expressão da proteína p53 numa forma inativa, impede-a de exercer a sua função como fator de transcrição regulador do ciclo celular e apoptose. Sendo que as mutações subsequentes viabilizam o comportamento agressivo.
Uma grande percentagem dos carcinomas anaplásicos, derivam de carcinomas bem diferenciados da tiróide que contêm mutações BRAF ou RAS e subsequentemente, adquirem mutações com uma progressiva e maior agressividade.
Esta neoplasia é extremamente agressiva, sendo responsável por > 50% das mortes por neoplasia da tiróide. No momento do diagnóstico, 90% dos doentes apresenta invasão local e 15 a 50% metastização à distância.1,4,5 Os locais mais frequentes de metastização são o pulmão (> 90%) e o osso (5-15%), sendo que menos de 5% dos doentes apresentam envolvimento de outros locais.
Em 2017 o “Union for International Cancer Control” (UICC) e o “American Joint Committee on Cancer” (AJCC) atualizaram o estadiamento TNM (tumor, nódulos metastáticos, metástases à distância) para o carcinoma anaplásico, passando a seguir a mesma definição de categoria “T” que nos carcinomas diferenciados da tiróide. No entanto, tal como anteriormente, todos os carcinomas anaplásicos são considerados estadio IV: intratiroideus (IVA), com invasão local ou ganglionar (IVB) e com mestastização à distância (IVC).
O carcinoma anaplásico, tem uma progressão muito rápida1,4,5 e fraca resposta aos tratamentos disponíveis, estando associados a uma taxa de mortalidade superior a 90%,4,6 e uma sobrevida média de 3 a 4 meses após o diagnóstico.1,4,7
A abordagem destes doentes deve ser multidisciplinar de forma a priorizar a prevenção e alívio do sofrimento, garantindo o melhor suporte ao doente e família na abordagem de questões associadas ao fim de vida. Os tratamentos paliativos não se limitam a cuidados de fim de vida e devem ser disponibilizados em paralelo a tratamentos com intenção curativa ou de prolongamento de vida.
Tem-se vindo a verificar um aumento dos carcinomas da tiróide nos últimos anos, que muitos autores pensam ser devido à melhoria da qualidade e sensibilidade de exames de diagnósticos.8,9
Relatamos um caso clínico de carcinoma anaplásico da tiroide em estadio IVC, diagnosticado num homem de 52 anos, revendo a literatura associada.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, 52 anos, terapeuta holístico, fumador (24 UMA). Sem antecedentes pessoais e familiares relevantes, nomeadamente exposição a radiação, história familiar ou pessoal de patologia tiroideia e/ou de neoplasia.
Assintomático até abril de 2014, altura em que notou um crescimento exuberante do volume cervical anterior que desvalorizou (Fig. 1). Nos 4 meses seguintes apresentou perda ponderal (10kg) associada a anorexia, disfagia de agravamento progressivo e posteriormente tosse com expetoração e hemoptises. Recorreu ao serviço de urgência onde se objetivou disfagia para líquidos, uma volumosa massa cervical anterior com circulação superficial, de consistência dura, sem frémito e aderente aos planos profundos acompanhada de emagrecimento e desidratação. Negava desconforto cervical, dispneia, disfonia, dor no peito, abdominal, óssea ou cefaleia. Relativamente ao exame objetivo auscultação pulmonar sem alterações, hepatomegalia, sem sinais neurológicos.
Foi iniciada a investigação, da qual se destaca: analiticamente uma anemia normocítica normocrómica; cálcio, fósforo e restante ionograma dentro dos valores de referência; função tiroideia e anticorpos anti-tiroglobulina e anti-peroxidase tiroideia sem alterações; velocidade de sedimentação 76 mm/h; função hepática com aspartato aminotransferase, fosfase alcalina e gama-GT elevadas (AST 91 UI/L, FA 346 U/L e gama-GT 200UI/L) e alanina aminotransferase normal; função renal sem alterações.
O caso foi discutido com a Hematologia, tendo sido decidido não realizar transfusão dado o estado terminal do doente e a não realização de ferro por risco de agravamento do seu estado clínico.
A tomografia computorizada cervical, torácica e abdominal revelou “...volumoso bócio multinodular, com origem no lobo esquerdo da tiróide, que comprime, deforma e desvia para a direita a via aérea superior, a hipofaringe e o esófago cervical… com metástases distantes, múltiplas adenopatias mediastínicas, metástases pulmonares, hepáticas (superior a 3 focos) e supra-renal direita.” (Fig’s. 2, 3 e 4)
A ecografia seguida de citologia aspirativa por agulha fina (CAAF) mostrou “Amostra citológica constituída por abundante celularidade que por vezes forma agregados e apresenta marcado pleomorfismo e atipia...” (Fig’s. 5 e 6).
Estabeleceu-se o diagnóstico de carcinoma anaplásico da tiróide em estadio IVC e foi proposto internamento que permitiu iniciar fluidoterapia juntamente com corticoterapia. Foi pedida a observação por Gastroenterologia, que sugeriu a colocação de gastrostomia endoscópica percutânea (PEG). Adicionalmente excluiu-se insuficiência adrenal ACTH basal e cortisol dentro dos valores de referência com baixa calcitonina (<2,0 pg/mL).
Posteriormente realizou traqueostomia, colocação de PEG e iniciou quimioterapia (QT) com doxorrubicina 50mg/ m2 e cisplatina 100mg/ m2.
Após o primeiro ciclo de quimioterapia, iniciou acompanhamento psicológico e ao 8º dia de QT por quadro de neutropenia febril, realizou filgastrim durante 5 dias e antibioterapia. No entanto, após três semanas o doente faleceu em contexto de septicemia associada a neutropenia febril.
DISCUSSÃO/ CONCLUSÃO
Apresentamos um caso raro de carcinoma anaplásico da tiróide em estadio IVC, diagnosticado num homem jovem, sem fatores de risco nem antecedentes de doença tiroideia conhecida. Apenas 30% dos carcinomas anaplásicos da tiróide ocorrem em indivíduos do sexo masculino e < 10% dos casos são diagnosticados em idade inferior a 50 anos.
A mortalidade específica da doença é elevada e no caso do nosso doente eram adicionalmente fatores de mau prognóstico o sexo masculino e a presença de metástases à distância. No entanto, a idade jovem e a ausência de comorbilidades eram fatores de bom prognóstico, pelo que em paralelo aos cuidados paliativos, iniciou-se quimioterapia com o objetivo de prolongar a vida do nosso doente.
Além disso, a via aérea foi assegurada pela traqueostomia, a colocação da PEG garantiu o acesso nutricional do doente e através de psicologia abordaram-se aspetos relacionados com o fim de vida.
Dado que o doente apresentava doença sistémica avançada, foi decidido apenas a realização de quimioterapia, no entanto, noutros casos deverá ponderar-se adicionalmente tratamento cirúrgico e/ ou radioterapia.
A cirurgia é reservada a casos em que se perspetiva a possibilidade de resseção da massa cervical (total ou parcial) sem danificar estruturas adjacentes (traqueia, esófago, laringe, cordas vocais, eixos vasculo-nervosos) ou, em casos em que é imprescindível para assegurar a via aérea. O tratamento combinado de quimioterapia e radioterapia está indicado, em primeira linha ou como adjuvante, em doenças menos avançadas do que a relatada neste caso clínico.
Entre as opções de quimioterapia disponíveis, optou-se pela associação dos citotóxicos doxorrubicina e cisplatina, por ser a mais eficaz na redução do volume tumoral e haver maior experiência clínica.
Em ensaios clínicos, a doxorrubicina apresentou uma taxa de resposta de 22%,3 induzindo nalguns casos uma resposta total, e quando associada à cisplatina aumenta ainda mais a sua eficácia.10 De acordo com a presença de determinados citotóxicos, como o paclitaxel que também é promissor, novas estratégias de quimioterapia estão a ser estudadas, tais como agentes disruptores vasculares, inibidores do recetor da tirosina quinase, terapêutica sistémica dirigida pelo estado mutacional (ex.: mutações BRAF V600E e TSC2) e imunoterapia.
Em conclusão, o carcinoma anaplásico da tiróide é extremamente letal em resultado da dificuldade de diagnóstico precoce e fraca resposta aos tratamentos sistémicos de que dispomos atualmente. No entanto a cirurgia, a radioterapia, a quimioterapia convencional e os novos citotóxicos podem aumentar a sobrevida dos doentes.11
A investigação nesta área é dificultada em grande parte por três fatores, a baixa prevalência desta doença, a incidência em faixas etárias mais avançadas e a sua rápida progressão. Sendo fundamental promover o desenvolvimento dos meios de diagnóstico mais avançados e investir na investigação de estratégias terapêuticas mais eficazes e individualizadas.12
Atualmente, a prevenção primária é a melhor arma contra este tipo de tumores, pelo que é fundamental o tratamento e monitorização adequados dos tumores bem diferenciados da tiróide.12,13
Figura I

Tumefação cervical, vista frontal.
Figura II

Imagem TC cervical.
Figura III

Imagem TC Torácica.
Figura IV

Imagem TC Abdominal.
Figura V

Coloração por Hematoxilina-Eosina.
Figura VI

Estudo Imuno-histoquímico CK 20+.
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