Introdução
No idoso com múltiplas patologias e polimedicado, as alterações laboratoriais de novo, tais como pancitopéniae défice de vitamina B12, devem suscitar investigação adicional que inclui síndromes de má absorção e fármacos. A Diabetes mellitus tipo 2 é uma patologia frequente, associando-se a complicações micro emacrovasculares, sendo o tratamento com metformina associado a défice de vitamina B12 em 30% dos doentes,1 neste caso havendo também o contributo de patologias concomitantes como gastrite atrófica e hipotiroidismo e terapêutica com antagonista de canais de cálcio e antiagregante plaquetário. Neste caso, a idade avançada, a longa evolução da diabetes e suas complicações e terapêutica prolongada com metformina em dose alta, constituem, na opinião dos autores, a causa do défice de vitamina B12 e o seu doseamento impõe-se no seguimento destes doentes.
Caso clínico
Apresentamos o caso de um doente de 80 anos com antecedentes de hipertensão arterial, hipotiroidismo autoimune, dislipidémia, cardiopatia isquémica e diabetesmellitus2 com 20 anos de evolução. Polimedicado com clopidogrel, metformina2g/dia, levotiroxina, bisoprolol, perindopril+amlodipina, rivaroxabanoeatorvastatina.
Internado por quadro de poliartralgias associado a rigidez mecânica e funcional, parestesiase hipoalgesia nos dermátomos T1, L4 e L5, náuseas e fadiga progressiva. Laboratorialmente apresentava pancitopenia com Hb12,5 g/dlnormocítica/normocrómica, leucócitos 3,44x10^9/L com 2000 neutrófilos e 129x10^9/L plaquetas, sem reticulocitose, vs 27 mm, hipossiderémia, folatos séricos 5,1ng/mL, vitamina B12< 100pg/ml, TSH 8,2uU/ml com FT4 normal, serologias virais negativas, incluindo VIH, hepatite B, C, bem como ANAscreening negativo, Ac.anti-célula parietal e anti-factorintrínseco negativos. A TC corpo excluiu adenopatias patológicas, hepatoesplenomegalia ou alterações do tubo digestivo de relevo. A EDA mostrou pólipo séssil no antro e histologicamente gastrite crónica atrófica extensa, sem Helicobacterpylori.
Assumido alterações hematológicas em contexto de défice de vitamina B12 em doente com diabetes tipo 2 delonga evolução medicada com dose elevada de metformina, associado a menor capacidade absortiva por patologias concomitantes e idade avançada, em detrimento da medicação com antagonistas de canais de cálcio e antiagregantes, com menor influência etiológica. Após reposição dos níveis de vitamina B12, com cianocobalamina injetável inicialmente e manutenção com cianocobalamina oral posteriormente, os sinais focais desapareceram e verificou-se normalização do hemograma. Optou-se por manter a terapêutica com metformina pelo controlo e adesão terapêutica prévia do doente, mantendo-se controlo regular dos níveis de vitamina B12.
Discussão
A diabetes é uma doença crónica importante na população portuguesa, afetando 13,1% da mesma.1A diabetes tipo 2 é a forma mais comum de doença. O seu tratamento é complexo e multifatorial, passando por alterações de estilos de vida e terapêutica médica.
Ametformina, uma biguanida, é o fármaco recomendado como primeira linha, sendo o fármaco mais estudado e com maior evidência em termos de prevenção e segurança a longo prazo.2, 3
Ametformina é ingerida sob a forma de sal, apresentando 50-60% de biodisponibilidade oral com uma baixa lipossolubilidade e, dessa forma, uma absorção celular lenta. A sua absorção ocorre maioritariamente no intestino delgado, sendo desprezível a percentagem absorvida no estômago e cólon.
A captação de metforminaé dose-dependente, assente num transportador bidireccional limitado, resultando num aumento da concentração intracelular de metforminano epitélio intestinal.3
Em 1971 surgiu o primeiro relato de défice de vitamina B12 associado ao uso demetformina.4 Existem atualmente muitos estudos que demonstram esta evidência, existindo consenso sobre a capacidade de diminuir os níveis séricos de vitamina B12, incluindo alguns estudos que apresentam uma relação dose-dependente entre o défice de vitamina B12 e ametformina.4 -17
A vitamina B12 resulta da digestão de proteínas de origem animal, posteriormente é capturada pela haptocorrina (denominada transcobalaminaI [TcI]), uma proteína libertada na saliva e no estômago, e o complexo é degradado por protéases pancreáticas com consequente transferência da vitamina B12 para o fator intrínseco gástrico (produzido pelas células parietais). Este complexo fator intrínseco-vitaminaB12 adere ao recetor específico nas células epiteliais do íleo terminal – acubilinaileal (também designada transcobalaminaI I [TC II]) -, desligando-se do fator intrínseco e, de seguida, liga-se a um transportador plasmático, sendo lançado na circulação portal.18
A atrofia gástrica presente em muitas patologias provoca a diminuição da produção de fator intrínseco, diminuindo consequentemente a absorção de vitamina B12; a anemia perniciosa é um exemplo de patologia associada a atrofia gástrica que se apresenta com défice de vitamina B12.18
Existem vários estudos que demonstram a correlação do défice de vitamina B12 e a toma continuada de metformina, no entanto, o mecanismo responsável não está totalmente esclarecido. Atualmente a explicação mais consensual é a antagonização do cálcio ionizado pela metformina, interferindo com a ligação cálcio-dependente do complexo fator intrínseco-vitamina B12 à cubilinaileal responsável pela sua absorção e, desta forma, diminuindo-a.4Este mecanismo foi comprovado por alguns estudos e ensaios clínicos.19
Também comprovado por estes mesmos estudos, o défice é reversível utilizando suplementos de Vitamina B12 e cálcio.
As consequências deste défice vitamínico são várias, sendo a manifestação mais comum a anemia megaloblástica. O quadro pode evoluir para sequelas neurológicas moderadas a graves, provocadas pela desmielinização progressiva, podendo incluir neuropatia periférica, arreflexia e perda de propriocepção e sensação vibratória.
Em 2017, um estudo português que incluiu 1007 doentes com diabetes tipo 2 revelava uma elevada prevalência do défice de vitaminaB12, com risco superior para idades mais avançadas, com maior tempo de evolução de doença e principalmente associado a outras patologias como o hipotiroidismo.1A literatura existente indica que quanto maior for a dosagem e duração da terapêutica com metformina maior o risco para o défice de vitamina B12. Este efeito secundário foi verificado pelo rechallenge positivo - método de verificação de causalidade -, confirmando-se a relação entre a toma de metformina e o défice de vitamina B12.20
Conclusão
A monitorização dos níveis de vitamina B12 nos doentes diabéticos tipo 2 sob terapêutica com metformina e a reposição do défice devem ser uma prioridade, evitando supressão medular nestes doentes. A idade avançada e má absorção consequente à senescência celular, associadas ao hipotiroidismo e terapêutica múltipla, poderão ter tido também contributo, realçando a importância da pluripatologia e polifarmácia no idoso.
No entanto, neste caso, a longa evolução da diabetes e suas complicações, a par de medicação prolongada com alta dose de metformina, parecem ser os principais responsáveis por este défice e consequente pancitopénia.
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