Introdução
O acidente isquémico transitório (AIT) é um fenómeno cerebrovascular secundário a isquemia cerebral que resulta em sintomas e sinais neurológicos transitórios. Em cerca de 10% dos casos, há risco de ocorrência de acidente vascular cerebral (AVC) nos 90 dias seguintes.1 A trombocitose essencial (TE) desenvolve-se a partir da proliferação clonal de uma célula progenitora mieloide.2 A sua apresentação clínica é inespecífica, variando desde assintomática até à predisposição para sintomas vasomotores, eventos trombóticos e hemorrágicos.3 Os critérios de diagnóstico segundo a classificação da Organização Mundial de Saúde, revistos em 2016, subdividem-se em major: trombocitose (contagem plaquetária ≥ 450 x 10^9/L), proliferação de linhagem megacariocítica de tamanho aumentado, com núcleos hiperlobulados em biópsia de medula óssea, presença da mutação JAK2, CALR ou MPL, sem outros critérios para neoplasias mieloides e em minor: presença de um marcador clonal ou ausência de evidência de reatividade. O diagnóstico assenta na presença dos 4 critérios major ou na presença dos 3 primeiros critérios major associados à presença do critério minor.4 A abordagem terapêutica é estratificada consoante o risco de complicações:5 nos doentes de baixo risco (<40 anos, sem fatores de risco cardiovasculares ou história prévia de trombose/hemorragia) utilizam-se agentes anti-agregantes plaquetários (aspirina em baixa dose); em doentes de alto risco (> 60 anos, história prévia de trombose/hemorragia ou contagem plaquetária >1500 x 10^9/L) utiliza-se terapêutica citorredutora (hidroxiureia) associada à aspirina em baixa dose. A abordagem do grupo de risco intermédio carece de evidência científica robusta, iniciando-se geralmente aspirina em baixa dose.6-8
Caso Clínico
Doente de 53 anos, género masculino, com antecedentes pessoais de tabagismo, dislipidemia, controlada com estatina (LDL <70 mg/dL), hipertensão arterial, controlada com inibidor da enzima de conversão da angiotensina (TAS<130 mmHg e TAD < 80 mmHg) e fibrilhação auricular paroxística, anticoagulado com rivaroxabano. A consulta do processo clínico revela múltiplas vindas prévias ao serviço de urgência (SU) por queixas inespecíficas de mal-estar generalizado, cefaleias, tonturas e precordialgia intermitente com irradiação para o membro superior esquerdo que motivaram a realização de tomografia computorizada cerebral (TC-CE), electrocardiograma e enzimologia cardíaca, que não revelaram alterações. Na última vinda ao SU, o doente referiu tonturas e parestesias da hemiface e membro superior esquerdos; ao exame objetivo, apresentou-se com hemihipostesia ipsilateral da face e membro superior esquerdo. Estes achados neurológicos revelaram-se transitórios, com duração de 30 minutos. Nesse contexto, realizou TC-CE que não evidenciou lesões cerebrais recentes, assumindo-se como provável diagnóstico um AIT. Analiticamente, destacava-se hemoglobina 14.8 g/dL, trombocitose - contagem plaquetária 905 x 10^9/L e parâmetros de inflamação sistémica negativos. O esfregaço de sangue periférico revelou plaquetas de volume aumentado. Posteriormente, foi orientado para a consulta de Medicina Interna, onde se procedeu ao estudo etiológico do evento neurológico. A pesquisa de sífilis, trombofilias e vasculites foi negativa. Realizou ecocardiograma, que não revelou alterações estruturais cardíacas e excluiu-se presença de estenose carotídea. A avaliação minuciosa de hemogramas prévios do doente realizados em contexto de SU por queixas neurológicas inespecíficas revelou a presença de trombocitose persistente nunca antes valorizada, com contagens plaquetárias ≥ 450 x 10^9/L, sucessivamente crescentes ao longo de 3 anos. Após a exclusão de trombocitose reativa a ferropénia ou estado inflamatório sistémico, realizou-se um medulograma que evidenciou linhagem megacariocítica em número aumentado, levantando-se a hipótese de trombocitose essencial (TE). A biópsia óssea corroborou essa hipótese, demonstrando fibrose reticular ligeira e positividade para a mutação JAK2 V617F. Para melhor caracterização da precordialgia e exclusão de cardiopatia isquémica, o doente aguarda a realização de cateterismo cardíaco. Iniciou terapêutica com hidroxiureia 500 mg/dia, aumentando progressivamente até 1500 mg/dia, registando-se melhoria da sintomatologia e diminuição da contagem plaquetária (905->606 x10^9/L).
Discussão
O presente caso descreve uma complicação cerebrovascular transitória num doente portador da mutação JAK2 V617F com fatores de risco cardiovasculares controlados, à exceção do tabagismo. Assim sendo, a trombocitose essencial surge como presumível fator predisponente desta complicação cerebrovascular associadamente ao tabagismo, após exclusão minuciosa de outras causas etiológicas de AIT. A literatura científica corrobora a associação entre eventos cerebrovasculares e TE. Arboix et al reportaram 6 casos em que a doença cerebrovascular foi a primeira manifestação desta patologia (sob forma de AIT e AVC), com acometimento da artéria cerebral média e posterior. Salientaram ainda que alguns doentes experienciaram AITs no mesmo território vascular antes da ocorrência do primeiro AVC, o que enfatiza o controlo urgente da TE. Curiosamente, um dos casos relatados apresentou-se com défice sensitivo isolado e transitório da região braquiofacial semelhante ao caso em epígrafe.9 A presença de um evento trombótico major (AIT) associado aos diversos fatores de risco cardiovasculares apresentados pelo doente determinaram a sua estratificação de risco como sendo “alto”. Como tal, iniciou terapêutica citorredutora com hidroxiureia,5 optando-se por não associar a aspirina em baixa dose, como previsto, uma vez que já se encontrava sob anticoagulação sistémica. Após instituição da terapêutica, o doente registou melhoria clínica e analítica. As sucessivas vindas do doente ao SU por fenómenos vaso-oclusivos típicos desta patologia - tonturas e cefaleias - realçam as queixas essencialmente neurológicas e pouco específicas, facilmente subvalorizadas. Estas queixas acompanharam-se por alterações no hemograma - contagens plaquetárias persistentemente elevadas e de carácter evolutivo ao longo de 3 anos, nunca sendo valorizadas até ocorrer o primeiro evento cerebrovascular major. Assim, sublinha-se a importância de rastrear esta patologia perante sintomas vasomotores inespecíficos e/ou eventos cerebrovasculares nos quais se verifique uma contagem plaquetária ≥ 450 x 10^9/L, uma vez que a terapêutica instituída precocemente previne complicações subsequentes.9 De modo geral, a TE apresenta um decurso indolente; contudo, é controverso se a esperança média de vida é semelhante à da população em geral.10, 11
Conclusão
A trombocitose essencial é uma patologia pouco frequente resultante da proliferação de uma célula progenitora mieloide, caracterizada por contagens plaquetárias ≥ 450 x 10^9/L. Na maioria dos casos associa-se a uma mutação genética, sendo a mais frequentemente descrita a mutação da JAK2. Esta patologia pode ser clinicamente silenciosa ou apresentar-se com sintomatologia vasomotora inespecífica e debilitante, sendo as queixas essencialmente neurológicas; adicionalmente, podem ocorrer complicações trombo-hemorrágicas, sendo estas últimas as principais causas de morbi-mortalidade. O diagnóstico atempado desta patologia permite instituir terapêutica consoante estratificação de risco, reduzindo o risco de complicações e contribuindo para a melhoria da qualidade de vida do doente.
BIBLIOGRAFIA
1. Coutts SB. Diagnosis and Management of Transient Ischemic Attack. Continuum (Minneapolis, Minn). 2017;23(1, Cerebrovascular Disease):82-92.doi: 10.1212/CON.0000000000000424.
2. Fialkow PJ. Stem cell origin of human myeloid blood cell neoplasms. Verhandlungen der Deutschen Gesellschaft fur Pathologie. 1990;74:43-7.
3. Meier B, Burton JH. Myeloproliferative Disorders. Hematology/oncology clinics of North America. 2017;31(6):1029-44.doi: 10.1016/j.hoc.2017.08.007.
4. Arber DA, Orazi A, Hasserjian R, Thiele J, Borowitz MJ, Le Beau MM, et al. The 2016 revision to the World Health Organization classification of myeloid neoplasms and acute leukemia. Blood. 2016;127(20):2391-405.doi: 10.1182/blood-2016-03-643544.
5. Barbui T, Barosi G, Grossi A, Gugliotta L, Liberato LN, Marchetti M, et al. Practice guidelines for the therapy of essential thrombocythemia. A statement from the Italian Society of Hematology, the Italian Society of Experimental Hematology and the Italian Group for Bone Marrow Transplantation. Haematologica. 2004;89(2):215-32.
6. Brière JB. Essential thrombocythemia. Orphanet journal of rare diseases. 2007;2:3.doi: 10.1186/1750-1172-2-3.
7. Chuzi S, Stein BL. Essential thrombocythemia: a review of the clinical features, diagnostic challenges, and treatment modalities in the era of molecular discovery. Leukemia & lymphoma. 2017;58(12):2786-98.doi: 10.1080/10428194.2017.1312371.
8. Melo JV, Goldman, J. M. Hematologic Malignancies: Myeloproliferative Disorders. Heidelberg: Springer; 2007.
9. Arboix A, Besses C, Acín P, Massons JB, Florensa L, Oliveres M, et al.Ischemic stroke as first manifestation of essential thrombocythemia. Report of six cases.Stroke. 1995;26(8):1463-6.doi: 10.1161/01.str.26.8.1463.
10. Passamonti F, Rumi E, Pungolino E, Malabarba L, Bertazzoni P, Valentini M, et al.Life expectancy and prognostic factors for survival in patients with polycythemia vera and essential thrombocythemia. The American journal of medicine. 2004;117(10):755-61.doi: 10.1016/j.amjmed.2004.06.032.
11. Hultcrantz M, Kristinsson SY, Andersson TM, Landgren O, Eloranta S, Derolf AR, et al. Patterns of survival among patients with myeloproliferative neoplasms diagnosed in Sweden from 1973 to 2008: a population-based study. Journal of clinical oncology : official journal of the American Society of Clinical Oncology. 2012;30(24):2995-3001.doi: 10.1200/JCO.2012.42.1925.