INTRODUÇÃO
A fibrose retroperitoneal é um processo fibroinflamatório anormal, que se desenvolve no espaço retroperitoneal, geralmente envolvendo a porção infrarrenal da aorta abdominal e vasos ilíacos. Foi descrita pela primeira vez em 1905,1 mas apenas foi reconhecida como entidade clínica em 1948 por John K. Ormond.2
Trata-se de uma condição rara, com caracterização epidemiológica escassa. Alguns estudos estimam a sua incidência em 0,1 – 1,3 casos/100 000 pessoas por ano e uma prevalência de aproximadamente 1,4 casos/100 000 habitantes. Surge frequentemente entre os 40 e 60 anos de idade e parece haver uma preponderância no sexo masculino (ratio 2:1 a 3:1).3 Na maioria dos doentes a etiologia permanece por identificar. Em cerca de 1/3 dos casos é possível identificar uma causa, como lesão local (hematoma, urinoma ou processos inflamatórios de órgãos retroperitoneais), vasculite e doenças do colagénio, cirurgia abdominal prévia, radioterapia, neoplasias e iatrogenia medicamentosa.4 A doença associada a IgG4 poderá também estar associada.5
O curso da doença é geralmente insidioso, sendo a uropatia obstrutiva geralmente a complicação mais frequente. No entanto, o envolvimento renal pode ainda manifestar-se por estenose dos vasos renais e atrofia renal.6
De seguida apresentamos um caso clínico de um homem de 72 anos, com diagnóstico de nefropatia obstrutiva como apresentação inicial de fibrose retroperitoneal idiopática.
CASO CLÍNICO
Homem de 72 anos, sem antecedentes pessoais patológicos relevantes e sem medicação crónica habitual. Recorreu ao Serviço de Urgência por quadro de anorexia, perda ponderal (10kg, 11,1% do peso prévio), astenia e enfartamento pós prandial com um mês de evolução. Ao exame objetivo destacava-se abdómen globoso e difusamente doloroso à palpação, com onda ascítica, sem massas ou organomegalias palpáveis. Os exames laboratoriais realizados documentaram lesão renal aguda com creatinina sérica de 7.1 mg/dL e ureia de 205 mg/dL, sem distúrbios iónicas ou do equilíbrio ácido-base, marcadores inflamatórios aumentados (PCR 53 mg/L, VS 16 mm/h), sem coagulopatia, sem citólise ou hiperbilirrubinemia, albumina sérica de 1,9 g/dL. Sedimento urinário normal, razão albumina creatinina em urina ocasional < 30 mg/dia.
Sem alterações do hemograma, nomeadamente leucograma, eletroforese das proteínas séricas de traçado normal e função tiroideia normal. Anticorpos anti-nucleares, ANCA, anticorpos anti-músculo liso, anti-TPO e anti-tiroglobulina negativos. Nível de isótipo IgG4 sérico normal. Realizada tomografia axial computorizada (TC) abdomino-pélvica que revelou ascite de moderado volume e massa retroperitoneal heterogénea com densidade de partes moles e hipercaptante (Figuras 1, 2 e 3), envolvendo os grandes vasos (sem compressão aparente destes) e condicionando uretero-hidronefrose bilateral por obstrução ureteral, mais marcada à direita. Sem outras alterações retroperitoneais, pélvicas ou dos órgãos parenquimatosos intra-abdominais. Estes achados eram compatíveis com o diagnóstico de Fibrose Retroperitoneal.
A ascite foi também abordada por paracentese diagnóstica e evacuadora, com drenagem de 2400 cc de líquido límpido, citrino, com predomínio de células mononucleares e gradiente albumina soro-ascite não compatível com hipertensão portal (< 1,1 g/dL). O exame citológico e imuno-citoquímico do líquido foi negativo para células neoplásicas.
Após a marcha diagnóstica inicial descrita, procedeu-se à derivação ureteral à direita com inserção de duplo J ipsilateral. Observou-se normalização da azotemia (ao 5º dia de internamento, apresentava Creatinina de 1,1 mg/dL). Após avaliação multidisciplinar concluiu-se que a massa retroperitoneal era irressecável e o doente foi submetido a uma laparotomia exploradora com realização de biopsia da área de fibrose. O exame histopatológico revelou tecido conjuntivo fibrótico sem desvios morfológicos valorizáveis e histiocitose ganglionar reativa, ausência de células plasmáticas positivas para IgG4. Exame cultural de micobactérias negativo.
Iniciada corticoterapia sistémica (prednisolona 1 mg/kg/dia) diariamente durante 4 semanas, com desmame progressivo até 5 mg por dia. A TC no seguimento de um ano mostrou regressão acentuada da massa retroperitoneal (>50%).
DISCUSSÃO
Não existem critérios diagnósticos estritamente definidos para fibrose retroperitoneal, sendo o diagnóstico difícil e muitas vezes tardio, realizado por um forte fator presuntivo, associado às manifestações clínicas e marcadores inflamatórios inespecíficos. A obstrução ureteral ocorre em até 80 a 100% dos casos e, como no caso descrito, pode ser a manifestação inicial.7,8
Os estudos de imagem são fundamentais para o diagnóstico. Atualmente, a TC e ressonância magnética (RNM) são as modalidades de primeira linha,9 tendo a tomografia por emissão de positrões (PET) um papel emergente no diagnóstico e monitorização destes doentes .7O exame histopatológico continua a ser o gold-standart para o diagnóstico.9
No caso do doente apresentado não foi possível identificar uma causa subjacente para o fenómeno fibrótico, o que vai de acordo com o que acontece na maioria dos doentes descritos na literatura.
Nos últimos anos assistiu-se a uma melhor caracterização de um espetro de doenças autoimunes que permitiu o reconhecimento de uma subclasse da Imunoglobulina G (IgG4), dando nome a um síndrome sistémico relacionado à IgG4, uma entidade clínica recente, que pode também englobar a fibrose retroperitoneal. Inicialmente descrito como pancreatite, foi posteriormente reconhecido o possível envolvimento de qualquer tecido ou órgão extra-pancreático. Histopatologicamente descreve-se um infiltrado linfoplasmocítico rico em IgG4 e por vezes uma concentração sérica elevada de IgG4.10 No caso apresentado as alterações histológicas observadas na biópsia eram inespecíficas, não se observando este padrão. Por outro lado, não se verificou envolvimento de qualquer outro órgão. Do restante estudo, não se identificou também qualquer neoplasia em evolução, fármaco iniciado de novo ou exposição prévia a radioterapia e/ou cirurgias abdominais. Desta forma, o diagnóstico final foi de fibrose retroperitoneal idiopática, corroborando a vasta penumbra ainda existente no conhecimento desta patologia. A ascite identificada foi enquadrada pelos autores, após a caracterização por paracentese, como decorrente da hipoalbuminemia documentada, que, dada a ausência de proteinúria, ausência de outros indicadores de doença/falência hepática ou ausência de alterações gastrointestinais, foi interpretada como em contexto do estado hipercatabólico do doente crítico/estado inflamatório, assim como do défice nutricional, em doente com síndrome constitucional, anorexia e perda ponderal marcadas. A recuperação analítica, documentada nas reavaliações subsequentes, assim como resolução da ascite, puderam, em retrospetiva, confirmar a hipótese mais provável adiantada.
O objetivo principal do tratamento da fibrose retroperitoneal é interromper a inflamação, reverter a fibrose e implementar medidas para proteger o rim de uma lesão crónica. Uma vez que não existem até então ensaios clínicos randomizados, o tratamento da fibrose retroperitoneal idiopática é empírico. A resolução espontânea tem sido relatada em alguns casos.7 Os doentes com doença ativa geralmente necessitam de medicação, como no caso do doente apresentado. Foi necessário efetuar a derivação ureteral com resolução da lesão renal aguda e foi instituída corticoterapia sistémica de forma empírica, com prednisolona 60 mg/dia e redução paulatina subsequente, com melhoria imagiológica comprovada da fibrose (aos 12 meses, verificada resolução superior a 50% da fibrose).
Figura I

Cortes da tomografia axial computorizada abdominal que revelam uma massa retroteritoneal envolvendo os ureteres.
Figura II

Reconstrução em plano sagital, demonstrando tecido fibrótico perivascular.
Figura III

Reconstrução em plano coronal, demonstrando fibrose retroperitoneal.
BIBLIOGRAFIA
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2.Ormond JK. Bilateral ureteral obstruction due to envelopment and compression by an inflamatory retroperitoneal process. J Urol 1948; 59: 1072-1079.
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