Introdução
A diabetes mellitus é uma doença metabólica que resulta no desenvolvimento de várias complicações sistémicas, nomeadamente macrovasculares (doença arterial oclusiva) e microvasculares (retinopatia, nefropatia e neuropatia).1
A neuropatia é a complicação crónica mais comum da diabetesmellitus.2,3 A lesão das fibras do sistema nervoso periférico manifesta-se clinicamente de variadas formas, de entre as quais as mais comuns são a neuropatia distal simétrica e a neuropatia autonómica.1-3 A neuropatia autonómica gastrointestinal pode afectar o sistema gastrointestinal a qualquer nível.1,4 A sua prevalência varia entre estudos (1,9 a 90%).4,5 Os sinais e sintomas incluem náuseas, vómitos, dor abdominal, diarreia, obstipação e incontinência fecal.3,5
A gastroparésia diabética define-se pelo atraso no esvaziamento gástrico em diabéticos devido à alteração da motilidade, na ausência de obstrução mecânica e após exclusão de outras causas.4 A gastroparésia ocorre frequentemente em diabéticos, contudo é assintomática na maioria dos casos1; a incidência de sintomas clinicamente relevantes de gastroparésia ocorre em apenas 5 a 12% dos diabéticos.2,4 Dada a inespecificidade dos sintomas e sua baixa frequência, esta complicação pode ser subdiagnosticada.1
Caso Clínico
Os autores descrevem o caso clínico de uma mulher de 75 anos, com antecedentes de diabetes mellitus tipo 2 com 12 anos de evolução, excesso de peso e hipertensão arterial essencial, medicada com metformina 3g id, vildagliptina 50 mg id e ramipril/amlodipina 5+5mg id. Referenciada à consulta de Medicina Interna por diarreia crónica com 2 meses de evolução associada a dor abdominal tipo cólica e náuseas. Referia início do quadro concomitante com o aumento da dose de metformina. A redução da dose acompanhou-se de resolução do quadro de diarreia, tendo iniciado, entretanto, obstipação, com necessidade de recurso a terapêutica laxante; manteve queixas de dor abdominal e náuseas, associadas a distensão abdominal e sensação de enfartamento pós-prandial. Analiticamente apresentava evidência de mau controlo metabólico, com HbA1c de 10,4%, anemia microcítica ferropénica (Hb 10,6 g/dL, VCM 78 fL, ferritina 17 ng/mL, saturação transferrina 9%, capacidade total de ligação ao ferro de 411 ug/dL, índice de produção de reticulócitos diminuído) e discretas alterações do perfil hepático (AST 53 U/L, ALT 80 U/L, FA 76 U/L, GGT 47 U/L, bilirrubina total 0,5 mg/dL). Leucograma, contagem de plaquetas, função renal, ionograma e proteína C reativa sem alterações. A pesquisa de sangue oculto nas fezes foi positiva, pelo que foi realizado estudo complementar: colonoscopia total sem alterações, endoscopia digestiva alta evidenciou hiperémia do antro por refluxo transpilórico e uma hérnia do hiato, sem outras alterações e endoscopia com video-cápsula sem alterações. A TC do abdómen objetivou hepatomegália homogénea em contexto de esteatose, sem outras alterações de relevo. A anemia ferropénica foi atribuída a prováveis perdas hemáticas por hérnia do hiato. Assim, foi introduzida insulina glargina 10 U de manhã, metoclopramida 10mg antes das refeições e sulfato ferroso, mantendo restante terapêutica. Após 3 meses, a doente repetiu análises, havendo melhoria do controlo metabólico (HbA1c de 7,7% e normalização dos valores do perfil hepático), assim como normalização de valores de hemoglobina. Por manutenção de sintomatologia gastrointestinal e suspeita de gastroparésia diabética, foi pedido estudo de esvaziamento gástrico com tecnésio 99m, que revelou um evidente atraso no esvaziamento gástrico, compatível com neuropatia autonómica diabética. Perante este resultado, manteve-se a terapêutica com procinéticos (metoclopramida e domperidona) e laxantes, para controlo da sintomatologia.
Discussão
O correto funcionamento do trato digestivo depende da boa coordenação dos movimentos peristálticos.2 A lesão dos neurónios do sistema autonómico e entérico gastrointestinal resulta em anomalias não apenas da motilidade, mas da sensibilidade, secreção e absorção gastrointestinais.4
A lesão neuronal que conduz à gastroparésia diabética é resultado de vários factores,4 sendo a hiperglicemia o estímulo inicial que despoleta vários mecanismos de lesão neuronal.2,4 Com a hiperglicemia, as moléculas de glicose em excesso são transportadas para dentro das células e metabolizadas através de vias alternativas (como poliol, hexosamina, metilglicina, ressíntese de diacilglicerol)2; ao ligarem-se a proteínas ou gorduras, as moléculas resultantes dessas vias causam a formação dos chamados produtosfinais de glicação avançada que causam dano à estrutura das células nervosas com consequente dano do músculo liso entérico e redução da sua contractilidade.2 A neuropatia resulta também de outros mecanismos, como lesão dos pequenos vasos que suprem os nervos (vasa nervorum),stressosmótico e processos inflamatórios.2
Os doentes com gastroparésia podem apresentar sintomas de estase (náuseas, vómitos, saciedade precoce, distensão abdominal, eructações frequentes), sintomas de refluxo (pirose, regurgitação) ou outros sintomas dispépticos.4 Adicionalmente estes podem associar-se a má nutrição, desidratação, má absorção de fármacos (o que pode causar variabilidade de valores de glicemia, assim como hipoglicemia inexplicada devido à dissociação entre a absorção de alimentos e os perfis farmacocinéticos da insulina e outros agentes3) e hiperproliferação bacteriana.2,4
Sintomas graves de gastroparésia surgem principalmente em doentes com mau controlo metabólico a longo-prazo.2,3 No caso apresentado, a diabetes tinha uma evolução conhecida de 12 anos, com mau controlo metabólico associado a hiperglicemia crónica.
Dada a inespecificidade dos sintomas de gastroparésia é sempre necessário excluir outros diagnósticos,1,4 sendo a neuropatia gastrointestinal um diagnóstico de exclusão.2,3 No caso apresentado, após extensa investigação e exclusão de outras patologias, a confirmação do diagnóstico foi realizado através de cintigrafia de esvaziamento gástrico, considerada o exame de eleição para avaliação do esvaziamento do estômago (sensibilidade de 90% e especificidade de 70%).4 Dado os sintomas descritos, este caso inclui-se na minoria de doentes diabéticos que manifesta sintomatologia clinicamente relevante de gastroparésia.
Apesar da morbilidade associada à neuropatia diabética, o seu tratamento permanece ainda insatisfatório.1,3 O controlo glicémico é parte essencial da abordagem terapêutica.1,3 A utilização de análogos GLP-1 e inibidores DPP-4 no tratamento da hiperglicémia deve ser interrompido,3 e na terapia com insulina, é recomendado substituir os análogos da insulina por insulina humana de ação curta administrada cerca de 30 minutos antes de uma refeição.2 O ótimo controlo da diabetes não evita o desenvolvimento de neuropatia, contudo reduz significativamente a severidade da sintomatologia.2
Na abordagem ao tratamento dos sintomas de gastroparésia deve proceder-se a uma avaliação do estado nutricional e aconselhamento de medidas dietéticas, como refeições fraccionadas e pequenas com baixo teor em gorduras e fibras.2-4 O tratamento farmacológico de primeira linha consiste em pró-cinéticos como a metoclopramida, a domperidona e a eritromicina.1,4 Contudo, preconiza-se que o mesmo seja a curto prazo, pelos efeitos colaterais associados a alguns fármacos (como sintomas extrapiramidais, parkinsonismo, acatísia ou discinésia tardia).2,3 Em segunda linha estão os anti-eméticos como o ondansetron (antagonista 5- HT3), anti-histamínicos H1 (prometazina) e antidepressivos tricíclicos em baixas doses.4 Outras alternativas terapêuticas sob investigação incluem a toxina A botulínica injectável e o sildenafil.4 Em casos severos, o alívio dos sintomas só é possível através do uso de sonda nasoentérica, jejunostomia, pacemaker gástrico ou cirurgia.1,4
O presente trabalho foi exposto no European Congress of Internal Medicine – 18-20 Março 2021.
BIBLIOGRAFIA
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