Mulher, 45 anos, antecedentes de asma, tabagismo, perturbação de dependência de substâncias (cocaína inalada), doença bipolar; sem medicação habitual, nem alergias medicamentosas.
Quadro de dispneia, tosse irritativa e sensação febril não quantificada, com 24 horas de evolução, admitindo consumo de cocaína previamente a início de sintomatologia. À admissão: febril, normotensa, taquicárdica (110 batimentos/minuto), taquipneica (frequência respiratória 24 ciclos/minuto), discurso entrecortado, tiragem supraclavicular, intercostal e abdominal; oximetria em ar ambiente (SpO2 aa) 86-88%, broncoespasmo marcado. Exames complementares: hipoxémia (pO2 46,3), elevação de parâmetros inflamatórios (leucocitose neutrofílica 13,370 x 10^9/L; proteína C reativa 536,7 mg/dL; procalcitonina 2,75 ng/mL), lactato desidrogenase (586 mg/dL) e D-dímeros (267,0 μg/L); serologia VIH 1/2 e pesquisa de SARS-CoV-2 (3 zaragatoas naso/orofaríngeas) negativas; telerradiografia tórax - hipotransparência basal direita; tomografia computorizada relatando múltiplos focos de densificação em vidro despolido envolvendo todos os lobos pulmonares, áreas de consolidação bilaterais sugerindo pneumonia organizativa. Sob antibioterapia empírica, verifica-se franca redução de marcadores inflamatórios (leucócitos 6,99 x 10^9/L; PCR 139,4 mg/dL) em apenas 24h - pelo que não atribuível a acção antibiótica devido ao escasso tempo de actuação - o que suscita hipótese de um “pulmão de crack”. Introduz-se corticoterapia sistémica, com resolução de hipoxémia no dia seguinte e, passadas 48h, de alterações radiográficas.
O “pulmão de crack” é uma síndrome que se apresenta 1 a 48 horas após o consumo desta substância.1 Caracteriza-se por febre, hemoptises, hipoxémia, eosinofilia e infiltrados pulmonares, de localização variável. O prognóstico é geralmente muito favorável.1-4 Quadros ligeiros revertem espontaneamente em 36 horas apenas com cessação do consumo e tratamento de suporte, enquanto que situações com tradução clínica de maior gravidade, tendem a expressar rápida melhoria, sob corticoterapia sistémica. Raramente, pode evoluir para síndrome de dificuldade respiratória aguda e falência respiratória terminal devido a pneumonite intersticial e bronquiolite obliterante com pneumonia organizativa.4
Figura III

Tomografia axial computorizada: Presença de múltiplos focos de densificação em vidro despolido envolvendo os todos os lobos pulmonares com distribuição predominantemente peri-broncovascular, com algumas zonas de espessamento regular dos septos inter e intra-lobulares, traduzindo padrão de crazy-paving. Observam-se ainda áreas de consolidação / tendência a consolidação ao nível dos segmentos posteriores do lobo inferior direito e anterior do lobo superior esquerdo com zonas sugerindo pneumonia organizativa. Ligeiro espessamento parietal brônquico difuso.
BIBLIOGRAFIA
1. Lazzarotto C, Bristol A, Piazza E, Forte D.Pulmão do crack: manifestações clínicas e radiológicas após inalação. ACM arq. catarin. med. 2009; 38(3).
2. Mançano A, Marchiori E, Zanetti G, Escuissato DL, Duarte B, Apolinário L. Complicações pulmonares após uso de crack: achados na tomografia computadorizada de alta resolução do tórax. J Bras Pneumol. 2008;34(5):323-7. doi: 10.1590/S1806-37132008000500012.
3. Tseng W, Sutter ME, Albertson TE. Stimulants and the lung: review of literature. Clin Rev Allergy Immunol. 2014;46(1):82-100. doi: 10.1007/s12016-013-8376-9.
4. Devlin RJ, Henry JA. Clinical review: Major consequences of illicit drug consumption. Crit Care. 2008; 12(1):202. doi:10.1186/cc6166.