INTRODUÇÃO
A síndrome de hipoprotrombinémiaé uma entidade clínica rara, caracterizada quer pelo défice adquirido de protrombina quer pelo aumento de anticoagulante lúpico.1-5 A protrombina é um cofator dependente da vitamina K e é clivado pelo fator Xa dando origem à trombina, a qual é responsável pela ativação de várias etapas da cascata da coagulação.2-4 O défice de protrombina é um achado frequente nas doenças hepáticas ou em doentes sob terapêutica com antagonista da vitamina K, que estão, também, associados a défices de outros fatores de coagulação, como o VII e X.4 A LAHS predispõe a hemorragias pelo défice de protrombina, bem como a tromboses, pelo aumento de anticoagulante lúpico.1-5 Os quadros hemorrágicos podem ter diferentes graus de gravidade, e apresentar-se sob várias formas, nomeadamente epistáxis, hematomas, metrorragias, hematúria e hemorragias cerebrais, sendo estas últimas potencialmente fatais.4 A incidência é maior na população jovem e no sexo feminino. Embora não exista um tratamento específico, a corticoterapia é considerada o tratamento de 1ª linha. O risco de eventos trombóticos pode aumentar durante o tratamento, como resultado do aumento de protrombina e da manutenção em circulação de anticoagulante lúpico, pelo que é essencial manter vigilância.1-5
A nefropatia lúpica surge, em média, em metade dos doentes com LES, com predomínio no sexo feminino. A biopsia renal permite a confirmação do diagnóstico, estadiamento e orientação terapêutica6. Em doentes com LAHS, o momento ideal para a realização da biópsia pode ser crítico, dado o risco hemorrágico inerente à técnica, devendo ser ponderado o risco benefício e aguardar a normalização da coagulação antes de realizar a técnica.
CASO CLíNICO
Mulher, 32 anos de nacionalidade brasileira, residente em Portugal há mais de 5 anos. Admitida por dor torácica esquerda com um dia de evolução, de características mecânicas, agravada à palpação, com irradiação para o dorso e região cervical e alívio em repouso. Associadamente, astenia e dispneia em esforço com um mês de evolução, artralgias de predomínio periférico, bilaterais e simétricas, com rigidez matinal (30 minutos média), tumefação articular interfalângicas e metacárpicas nas últimas duas semanas, rash malar, e na última semana, metrorragia abundante (cataménios médios de 3 dias). História de viagem ao Brasil, dois meses antes, tendo permanecido durante um mês. Nesse período refere internamento por pneumonia complicada com derrame pleural (sem acesso a processo clínico e doente sem saber especificar estudo e tratamento realizado). Sem antecedentes pessoais prévios conhecidos, ou medicação crónica. Sem hábitos tabágicos, alcoólicos ou consumo de drogas ilícitas. No Brasil, esteve alojada em casa com boas condições sanitárias. Consumo de água engarrafada. Sem contacto com animais. Sem história familiar de relevo.
Na admissão, a doente encontrava-se hipertensa (176/56 mmHg) e taquicárdica (108 bpm), com rash malar, tumefação das articulações interfalângicas e metacárpico-falângicas, bilaterais e dolorosas. Apresentava adenopatias palpáveis nas cadeias ganglionares axilares e inguinais, com aproximadamente 3 cm de diâmetro, móveis, indolores e de consistência mole. Do estudo analítico (tabela nº1), destaca-se anemia hipoproliferativa (normocítica e normocrómica com ferropenia), velocidade de sedimentação 122mm/h, estudo imunológico: ANA 1/2560, anti-ds-DNA 404,80 UI/mL e consumo de complemento C3 e C4, alteração do estudo da coagulação com prolongamento aPTT e PT e 1.15g/dia de proteína em urina de 24h. Realizada tomografia computadorizada (TC) tóraco-abdominal que revelou múltiplas adenopatias axilares, mediastínicas, hepáticas e inguinais e derrame pericárdico de moderado volume; ecocardiograma sendo descrito: sem alteração da função ventricular, nem alterações da contrariabilidade ou valvular e presença de derrame pericárdico de moderado volume. Em estudo eletrocardiográfico, identificada fibrilhação auricular, com frequência cardíaca controlada. Nesta fase, o diagnóstico de SLE inaugural foi assumido e iniciou tratamento com prednisolona 1 mg/Kg/dia.
Uma semana depois, apresentou melhoria das queixas de astenia e artralgias, mas mantinha metrorragia abundantes, a condicionar queda da hemoglobina e necessidade de suporte transfusional. Observada por Ginecologia e realizado estudo ginecológico não tendo sido objetivada qualquer alteração. Analiticamente mantinha prolongamento de aPTT e PT, sem outras alterações a justificar, nomeadamente lesão hepática, fármacos, infeção, hemólise ou neoplasia. Assim, pedido estudo dos diversos fatores de coagulação, tendo sido identificado défice de protrombina associado à presença em circulação de um fator inibidor específico para a protrombina (Tabela 1). Foi ajustada terapêutica, com bólus de metilprednisolona (125mg/dia) durante 3 dias, seguido de prednisolona 1mg/Kg/dia. Uma semana depois, doente apresentava-se sem metrorragias, com estabilização do valor de hemoglobina (Hb), normalização de aPTT e PT e diminuição de fator inibitório, pelo que se iniciou azatioprina com redução gradual da corticoterapia (total realizado 3 meses). Após duas semanas, analiticamente sem défice de fator II e sem evidência em circulação de inibidor de fator II. Repetido ecocardiograma que revelou resolução de derrame pericárdico. Realizada biópsia renal, cujo resultado confirmou nefrite Lúpica em classe IV, tendo iniciado Micofenolato de Mofetil e suspenso azatioprina. A doente teve alta, com orientação para consulta de Medicina Interna e Nefrologia.
Um ano após, sem novas agudizações de LES, com normalização de valores de Hb e do estudo da coagulação, sem fator inibidor anti II em circulação, sem consumo de complemento, diminuição de ANA e com resolução de proteinúria (Tabela 1).
DISCUSSÃO
A LASH é uma entidade clínica rara associada a maior predisposição para eventos hemorrágicos e trombóticos1.A suspeita de LAHS surge na maioria das vezes perante uma hemorragia associada a alteração do estudo da coagulação, com prolongamento do aPTT e PT, após terem sido excluídas outras causas, particularmente doença hepática, fármacos e hemólise. A alteração da coagulação nesta síndrome é explicada pelo défice de protrombina, secundária à presença de um fator inibitório.2,3,5 Estes fatores inibitórios constituem anticorpos que se ligam á protrombina, neutralizando-a e formando complexos que levam a um aumento da clearance da protrombina em circulação e, consequentemente, à sua diminuição com compromisso da sua funcionalidade.1
A LAHS é mais comum nas crianças e adultos jovens e apresenta maior incidência no sexo feminino.2 Geralmente esta síndrome está relacionada com agudizações de doenças imunológicas como o LES, mas também pode ser desencadeada por infeções virais, neoplasias e em casos raros por reações farmacológicas2,3.Clinicamente, caracteriza-se por hemorragias com diferentes graus de severidade, algumas potencialmente fatais, como por exemplo hemorragias cerebrais, cursando também com um risco de trombose à custa da presença do anticoagulante lúpico em circulação.2 O risco de trombose é superior aquando do início de tratamento, em que os níveis de protrombina começam a normalizar e mantém-se os níveis aumentados de anticoagulante lúpico. Nestes doentes é fundamental uma ponderação do risco benefício de terapêuticas anticoagulantes. O caso descrito, apresenta vários elementos chaves desta síndrome associada a LES, nomeadamente, surgimento aquando do diagnóstico de LES numa jovem de 32 anos, clínica de metrorragias e analiticamente com alteração da coagulação com posterior identificação de défice de protrombina, após excluídas outras etiologias.
Não existe atualmente consenso a nível internacional de qual a melhor abordagem terapêutica, sendo um ponto fulcral o controlo dos eventos hemorrágicos, com administração de plasma, plaquetas, complexo protrombínico, transfusão de glóbulos rubros e por fim, imunossupressão para eliminar o fator inibitório.2,3 Apesar de não haver um tratamento preconizado, a corticoterapia é considerada o tratamento de 1ª linha, com bólus de metilprednisolona seguida de prednisolona em esquema de desmame, que se reflete, ao final de umas semanas, na normalização da trombina e consequentemente do apTT e PT. Nos casos em que tal não acontece, o uso de ciclofosfamida, azatioprina e rituximab surgem como alternativas viáveis.2 O reduzido número de casos não permite preconizar estas terapêuticas como uma alternativa ao tratamento padrão. De notar que, após instituição da terapêutica, a redução do fator inibitório em circulação associa-se a um aumento do risco de eventos trombóticos pela manutenção dos níveis de anticoagulante lúpico.4 Trata-se assim, de uma fase crítica na gestão desta patologia, que requer, por parte da equipa médica, especial atenção e ponderação da necessidade de instituir terapêutica hipocoagulante. As recaídas de LAHS são comuns nos casos associados a doenças autoimunes,2 necessitando de vigilância clínica. O prognóstico desta entidade clínica é sobretudo dependente das sequelas que advenham dos eventos hemorrágicos.
Neste caso, de realçar, o diagnóstico de nefrite lúpica. O envolvimento renal por LES é frequente, e um sedimento urinário ativo com ou sem alteração da função renal deve levantar a suspeita. Não raras vezes, os achados clínicos e analíticos subestimam o verdadeiro envolvimento renal no LES, na medida em que, tal como no caso apresentado, existindo apenas microalbuminúria, só a biópsia renal permitiu confirmar o diagnóstico de nefrite lúpica grau IV, um dos graus mais severos da doença.6
A realização de biópsia renal é fundamental para o diagnóstico e estadiamento, influenciando posteriormente a decisão terapêutica e prognóstico. Em pacientes com LAHS, o procedimento deverá ser adiado até normalização de valores de coagulação. Um doente com nefrite lúpica grau IV apresenta-se geralmente com hematúria e macroalbuminuaria e por vezes síndrome nefrótico, o que não aconteceu ao caso descrito, revelando a importância do alerta e do estudo anatomo-patológico para uma classificação assertiva. A instituição de terapêutica imunossupressora está indicada nesta fase, sendo o Micofenolato de Mofetil uma das escolhas preferenciais. Uma vez que não havia relatos de agravamento de LAHS no uso desta terapêutica imunossupressora e dado que o valor de fator inibitório II era já baixo nesta fase, optou-se por iniciar esta terapêutica.6
O caso clínico apresentado constitui um desafio diagnóstico, não somente pela raridade da LASH, como também pela difícil gestão terapêutica com vista à prevenção de eventos hemorrágicos, mas também dos trombóticos. Destaca-se ainda o espectro clínico amplo do LES, neste caso em particular sob a forma de LASH, e ressalva-se a importância da biópsia renal mesmo em casos em que analiticamente o envolvimento renal pelo LES pareça pouco provável.
Quadro I
Estudo complementar de diagnóstico
Exames Complementares de Diagnóstico | |
| Resultados |
Hemograma | Hemoglobina 8,7g/dL – Anemia normocitica e normocrómica Leucócitos 6.7x10*3uL , plaquetas 245x10*3uL |
Bioquímica | Creatinina 0.8mg/dL Velocidade de sedimentação 122 mm/h Ferro 13 ug/dl, Ferritina 370 ng/dl , ácido fólico 20ng/mL e vitamina B12 187 pg/mL Colesterol Total 145, HDL 63, LDL 82 Eletroforese sem picos monoclonais |
Estudo imunológico | AFator reumatoide – negativo Ac antinucleares (ANA) – positivo (1/2560); Anti-double stranded DNA (Anti-dsDNA) – positivo (404,80 UI/ml) Ac Anti-Sm – positivo (94.4); Ac Anti-RNP – positivo (200) Ac Anti-cardiolipina e Anti fosfolipídico – negativo |
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Coagulação | APTT - admissão: 79.5seg; alta: 19.8 seg; INR - admissão: 2.72; alta: 1.7; Anticogulante lúpico – Ratio de 2.49; Trombina (intervalo de valores 70-120%): admissão: 6.5%; alta: 61%; um ano depois: 96, Antithrombin – normal; Coombs test - positivo; Factor VII, V e Von Willebrand factor - normal |
TAC cervical, tórax, abdómen, pelvis | Adenopatias pequenas submentonianos, submandibulares e jugulares. Várias adenopatias mediastínicas na região pre vascular. Sem alterações do parênquima pulmonar ou derrame pleural. Derrame pericárdico de moderado volume. Adenopatia axilar esquerda de 19mm. Adenopatias hepática, ilíaca e inguinal. |
Ecocardiograma | Admissão: Derrame pericárdico de grande volume. Alta: derrame pericárdico de pequeno volume Um ano de pois: sem derrame pericárdico. |
Biópsia Renal | Sem esclerose e lesões vasculiticas glomerular. Sem sinais de necrose tubular aguda. A nível tubular raros cilindros hialinos identificados. Interstício rodeado por infiltrados mononucleados. Sem fibrose identificada. Sem alterações no componente vascular. Imunofluorescência:Nefrite lúpica classe IV |
RMN cerebral | Sem alterações |
Positron emission tomography (PET) | Sem alterações |
Mamografia | Sem alterações |
Ecografia ginecológica | Sem alterações |
Endoscopia digestiva alta | Sem alterações |
Endoscopia digestiva baixa | Sem alterações |
Estudo complementar de diagnóstico
BIBLIOGRAFIA
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2- MulliezSMN, KeyserF,VerbistC, VantilborghA,Wijns, Beukinga I, Devreese KMJ(2015);Lupus anticoagulant-hypoprothrombinemia syndrome: report of two cases and review of the literature.http://lup.sagepub.com, 10.1177/0961203314558859 .
3- Meireles E, Machado F, Teles L, Chumakova A, Sequeira J, Spínola A (2019);A case report of severe bleeding due to lupus anticoagulant hypoprothrombinemia syndrome.Journal of Thrombosis and Thrombolysis;https://doi.org/10.1007/s11239-019-01955-1
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6- Almaani S, Meara A, Rovin BH,Update on Lupus Nephritis, Clin J Am Soc Nephrol. 2017;12(5):825. Epub 2016 Nov 7