Introdução:
A hemofilia adquirida A é uma doença hemorrágica rara caracterizada pela produção de anticorpos contra o fator de coagulação VIII.1 Contrariamente à hemofilia A clássica ou congénita, caracterizada por um défice de FVIII, a hemofilia adquirida ocorre devido à produção de auto-anticorpos contra o FVIII, designados por inibidores. Estes neutralizam parcial ou totalmente a função de um dado fator de coagulação, podendo também acelerar a sua excreção, determinando assim uma redução da sua atividade pro-coagulante.2 Surge essencialmente entre a sexta e sétima décadas de vida, podendo ocorrer em idade mais jovem quando associada a gravidez ou patologia auto-imune. Contrariamente à sua forma clássica, a HAA ocorre com igual incidência em ambos os géneros.1,3 A etiologia da HAA é idiopática em cerca de 50% dos casos, principalmente na população idosa. Os restantes casos estão associados a comorbilidades subjacentes como neoplasias, principalmente hematológicas como a leucemia linfocítica crónica, linfoma não-Hodgkin e mieloma múltiplo, e doenças autoimunes, como é o caso da artrite reumatoide, lúpus eritematoso sistémico, síndrome de Sjögren, arterite temporal ou psoríase.4,5 Cerca de 20% dos casos ocorre na gravidez e puerpério, mais frequentemente na primeira gravidez e habitualmente com resolução espontânea até 30 meses após o parto.4,6 Pode ainda ser desencadeada por fármacos, nomeadamente antimicrobianos como é o caso da penicilina, antiagregantes plaquetários ou anti-inflamatórios não-esteróides.4,5 O quadro clínico mais frequente consiste em hemorragias clinicamente relevantes, espontâneas ou provocadas, na sua maioria da pele, mucosas, tecidos moles e músculo, como no caso aqui apresentado. Pode também ocorrer hemorragia gastrointestinal, retroperitoneal ou do trato urinário. Frequentemente, os episódios hemorrágicos podem surgir após procedimentos invasivos, no pós-operatório e no pós-parto, habitualmente em doentes sem história pessoal ou familiar de coagulopatia. Ao contrário da hemofilia clássica, as hemartroses não são frequentes.4,7,8 A hemorragia intracraniana é rara, mas potencialmente fatal. Estima-se que a mortalidade associada à HAA ronde os 20% nos doentes com mais de 65 anos, estando na sua maioria relacionada com as comorbilidades previamente presentes.3,9
Por se tratar de uma patologia rara e ainda pouco debatida entre a comunidade científica, o diagnóstico da hemofilia adquirida pode ser complexo e, muitas vezes, tardio.
Caso Clínico:
Apresenta-se o caso de um homem de 87 anos, com antecedentes conhecidos de adenocarcinoma do cólon proposto para hemicolectomia direita, neoplasia da próstata submetido a prostatectomia radical e sob hormonoterapia, carcinoma espinocelular do lábio recidivado, psoríase sob terapêutica tópica, diabetes tipo 2 não insulinotratado e sem complicações micro ou macrovasculares conhecidas, e fibrilhação auricular sob hipocoagulação oral com apixabano. Foi admitido no Serviço de Urgência após atropelamento por veículo ligeiro a baixa velocidade, do qual resultou traumatismo da região pélvica e membros inferiores, com hematoma do joelho direito. Sem critérios de gravidade ou indicação cirúrgica, teve alta com indicação para vigilância e seguimento em ambulatório, mantendo a terapêutica hipocoagulante. Um mês após o acidente, é readmitido por quadro de astenia, adinamia e aumento progressivo do hematoma do membro inferior direito, com inadequado controlo álgico e limitação funcional. À observação, apresentava-se hemodinamicamente estável, com palidez mucocutânea. Descrito hematoma extenso e edema da coxa direita, mais significativo na face póstero-externa, com dor à mobilização ativa e passiva da coxa, sem sinais de compromisso vascular agudo. Laboratorialmente com hemoglobina de 5,7g/dl, plaquetas de 245 x 103/μl, INR de 1,45, tempo de protrombina (TP) de 16,3 segundos (valor de referência 9,4 a 12,5) e tempo de tromboplastina parcial activada (aPTT) de 133 segundos (25,1 a 36,5), fibrinogénio de 4,5g/L, creatinacinase de 91U/L e mioglobina de 298,4ng/ml. Realizou suporte transfusional e suspendeu apixabano, não tendo sido realizada qualquer terapêutica para reversão da hipocoagulação. Complementado estudo com tomografia computorizada (TC) da articulação coxo-femoral, onde se documentou fratura sub-capital do fémur direito, com indicação para tratamento conservador, e sufusão hemática do plano muscular da raiz da coxa direita. Na angio-TC abdomino-pélvica destacava-se presença de líquido hemático na cavidade pélvica e volumosa coleção no músculo glúteo direito, admitindo-se presença de foco hemorrágico no seu seio, com origem em ramo da artéria ilíaca interna homolateral. Durante o internamento assistiu-se a progressão do hematoma da coxa direita e aparecimento de hematomas espontâneos a nível dos membros superiores, com queda progressiva de hemoglobina e necessidade de novo suporte transfusional com concentrado eritrocitário e plasma fresco congelado. Por manter prolongamento persistente do aPTT, apesar da suspensão da hipocoagulação, foi colocada a hipótese de coagulopatia subjacente e pedido o doseamento do fator VIII – inferior a 0,5% (50 a 100) – e dos respetivos inibidores – positivos com 137,65 UBethesda (negativo < 0,5), o que confirmou o diagnóstico de hemofilia adquirida A.
Discussão:
O aumento isolado e persistente do aPTT no caso clínico apresentado, mesmo após suspensão da hipocoagolução oral e sem outra causa atribuível, associado ao quadro de hemorragia aguda ou recente num doente idoso e sem história prévia de hemorragia ou coagulopatia, deve levar em consideração o diagnóstico de HAA. Esta trata-se de uma patologia rara, cujo diagnóstico foi confirmado pelo nível reduzido de fator VIII e pela presença de inibidores, sem alterações do tempo de protrombina ou da contagem plaquetária. O prolongamento isolado do aPTT não atribuível a outras causas pode, não raras vezes, ser a primeira manifestação da doença. No entanto, este traduz apenas o défice de um dos fatores intervenientes na via intrínseca da cascata de coagulação. A presença de um inibidor é detetada através da mistura do plasma do doente com plasma controlo, verificando-se que não há correção do aPTT, ao contrário do que acontece na hemofilia A clássica em que se assiste à normalização deste parâmetro.7-10
A abordagem terapêutica da HAA foca-se essencialmente em dois objectivos: controlo da hemorragia aguda e erradicação dos inibidores do FVIII. O controlo da hemorragia é feito com os designados agentes bypass, nomeadamente complexo protrombínico – onde se inclui o FEIBA (Factor Eight Inhibitor Bypass Activity) – e o fator VIII recombinante. Simultaneamente ao controlo hemorrágico deve ser levada a cabo a erradicação dos inibidores de forma a suprimir a produção de autoanticorpos contra o FVIII. Esta é possível com terapêutica imunossupressora, que deve ser iniciada no momento do diagnóstico, nomeadamente corticoterapia sistémica, Ciclofosfamida ou anticorpos monoclonais.5,8,9,11 No doente em questão foi iniciada terapêutica com FEIBA (Factor Eight Inhibitor Bypass Activity) e corticoterapia sistémica com prednisolona 1mg/kg/dia, com melhoria clínica e analítica. Gradualmente assistiu-se a uma estabilização dos valores de hemoglobina, normalização do aPTT, subida progressiva do título do fator VIII e diminuição dos respectivos inibidores. Neste contexto, tendo em conta os vários fatores de risco protrombótico do doente e associados à terapêutica com FEIBA, avaliando a relação risco-benefício, optou-se por manter apenas corticoterapia.
O agravamento clínico posterior, com documentação em angioTC coxofemoral de volumosa coleção hemática persistente a nível do glúteo direito e com hemorragia ativa, demonstrou que, contrariamente à hemofilia A clássica, o fenótipo clínico da HAA não se correlaciona diretamente com o nível de FVIII ou título do inibidor, existindo risco de hemorragia potencialmente grave até à erradicação total do inibidor.9 Perante evidência de coagulopatia, optou-se por protelar eventual abordagem endovascular e o doente foi novamente submetido a suporte transfusional e retomou terapêutica com FEIBA, sem melhoria, pelo que foi associada ciclofosfamida 50mg/dia, com estabilidade do ponto de vista hematológico, subida do fator VIII para 43,9% e inibidores negativos.
Concomitantemente à abordagem terapêutica inicial, é premente a investigação etiológica, nomeadamente a presença de doenças auto-imunes como a artrite reumatoide ou o lúpus eritematoso sistémico, neoplasias subjacentes como as doenças linfoproliferativas, e pesquisa de fármacos potencialmente causadores de hemofilia adquirida.
No caso descrito existe evidência de patologia neoplásica ativa, nomeadamente adenocarcinoma do cólon e carcinoma espinocelular do lábio. Embora haja uma associação mais frequente entre a HAA e as neoplasias hematológicas, no doente idoso são mais frequentes as neoplasias sólidas, designadamente os tumores do pulmão, próstata e cólon.412 Frequentemente, o tratamento da patologia de base é necessário para a erradicação dos inibidores, desconhecendo-se ainda qual o mecanismo responsável pela associação entre o cancro e a hemofilia adquirida.4,12 Concomitantemente à patologia neoplásica, o doente apresentava ainda o diagnóstico de psoríase, admitindo-se também o contributo desta doença auto-imune para o desenvolvimento da HAA. Neste contexto, e face às etiologias mais prováveis, optou-se por não prosseguir o restante estudo complementar. Apesar da estabilidade clínica e hematológica, o doente permaneceu internado por motivos de índole social, tendo vindo a falecer após 69 dias de internamento em contexto de intercorrência nosocomial.
O diagnóstico da hemofilia adquirida pode ser complexo e, muitas vezes, tardio. A abordagem da HAA requer a atuação conjunta de uma equipa multidisciplinar, em centros diferenciados, não só reconhecendo e tratando precocemente as complicações da doença, mas privilegiando também o adequado acompanhamento e prevenção de eventos hemorrágicos potencialmente graves.
BIBLIOGRAFIA
1. Kessler CM, Knobl P. Acquired haemophilia: an overview for clinical practice.Eur J Haematol. 2015;95 Suppl 81:36-44.
2. Cugno M, Gualtierotti R, Tedeschi A, Meroni PL.Autoantibodies to coagulation factors: from pathophysiology to diagnosis and therapy. Autoimmun Rev. 2014;13(1):40-8.
3. Knoebl P, Marco P, Baudo F, Collins P, Huth-Kuhne A, Nemes L, et al. Demographic and clinical data in acquired hemophilia A: results from the European Acquired Haemophilia Registry (EACH2). J Thromb Haemost. 2012;10(4):622-31.
4. Douglas W. Sborov GMR. Acquired Hemophilia A: A Current Review of Autoantibody Disease. Clinical Advances in Hematology & Oncology. 2012 ;Volume 10(Issue 1):19-27.
5. Janbain M, Leissinger CA, Kruse-Jarres R. Acquired hemophilia A: emerging treatment options. J Blood Med. 2015;6:143-50.
6. Tengborn L, Baudo F, Huth-Kuhne A, Knoebl P, Levesque H, Marco P, et al. Pregnancy-associated acquired haemophilia A: results from the European Acquired Haemophilia (EACH2) registry. BJOG. 2012;119(12):1529-37.
7. Giangrande P. ACQUIRED HEMOPHILIA. World Federation of Hemophilia (WFH). 2012;November 2012 · No. 38.
8. Kruse-Jarres R, Kempton CL, Baudo F, Collins PW, Knoebl P, Leissinger CA, et al. Acquired hemophilia A: Updated review of evidence and treatment guidance. Am J Hematol. 2017;92(7):695-705.
9. Collins P, Baudo F, Huth-Kuhne A, Ingerslev J, Kessler CM, Castellano ME, et al. Consensus recommendations for the diagnosis and treatment of acquired hemophilia A. BMC Res Notes. 2010;3:161.
10. Tiede A, Collins P, Knoebl P, Teitel J, Kessler C, Shima M, et al. International recommendations on the diagnosis and treatment of acquired hemophilia A. Haematologica.2020;105(7):1791-801.
11. Tiede A, Giangrande P, Teitel J, Amano K, Benson G, Nemes L, et al.Clinical evaluation of bleeds and response to haemostatic treatment in patients with acquired haemophilia: A global expert consensus statement. Haemophilia. 2019;25(6):969-78.
12. Napolitano M, Siragusa S, Mancuso S, Kessler CM. Acquired haemophilia in cancer: A systematic and critical literature review.Haemophilia 2018; 24: 43-56