INTRODUÇÃO:
A tempestade tiroideia, crise tiroideia, hipertiroidismo agudo ou delirium tiroideu surge descrita na literatura pela primeira vez em 1928.1 Estes doentes podem expressar-se com sintomas exuberantes de hipertiroidismo, por vezes associados a descompensação cardiovascular. A maioria dos doentes apresenta-se com taquicardia grave – incluindo fibrilhação auricular (FA) – e com frequência estão presentes sinais de insuficiência cardíaca (IC). No limite, pode ocorrer choque cardiogénico.2-4
Sem tratamento, o quadro cursa com taquidisrritmias que podem condicionar insuficiência cardíaca congestiva por alto débito, sem que haja história de doença cardíaca prévia. É expectável que se verifique no controlo analítico um aumento da triiodotironina (T3 livre) e tiroxina (T4 livre) com valor da hormona estimulante da tiróide (TSH) indoseável. Trata-se de uma emergência associada a elevada taxa de mortalidade se não reconhecida e tratada. Perante a suspeita diagnóstica, o tratamento inicial poderá ser induzido na ausência de resultados laboratoriais.3
O score de Burch e Wartofsky de 1993 é referenciado na literatura como uma ferramenta útil para reconhecer esta entidade, apresentando os seguintes critérios diagnósticos: disfunção da termorregulação (pontuação de 5 a 30); disfunção cardiovascular – taquicardia/ FA/ IC (pontuação respetivamente de 5-25; 0-10; 0-20); disfunção hepática e gastrointestinal (pontuação de 0-20); disfunção do sistema nervoso central (pontuação de 0-30) e presença ou não de história precipitante (pontuação de 0-10). De facto, a hipertermia, as alterações neurológicas (agitação psicomotora, psicose, convulsões), cardiovasculares (taquicardia e hipertensão sistólica), gastrointestinais e hepáticas (emagrecimento, diarreias, disfunção hepática) são manifestações típicas da tempestade tiroideia.2
Os autores propõem-se apresentar o caso clínico de uma doença de Graves cuja apresentação inaugural foi em tempestade tiroideia, uma emergência endocrinológica rara e potencialmente fatal. Para além disso, durante o acompanhamento da doente foi diagnosticada orbitopatia e acropatia, este último, um achado raro nesta patologia.
CASO CLÍNICO:
Doente do sexo feminino, de 49 anos, autónoma nas atividades de vida diária, empregada doméstica, foi conduzida pela equipa médica do pré-hospitalar à Sala de Emergência com quadro de taquidisrritmia por FA, frequência cardíaca (FC) média de 200 batimentos por minuto. Clinicamente apresentava-se com agitação psicomotora, dispneia para pequenos esforços e tremores finos das extremidades.
Não tinha antecedentes pessoais patológicos ou medicação crónica, no entanto, com história de tabagismo no passado (20 Unidades-Maço-Ano), em cessação há 2 anos. Do ponto de vista ginecológico/obstétrico, destacam-se duas gestações, sem intercorrências e menopausa há 8 meses, sem terapêutica hormonal de substituição. A doente reportou história familiar de morte súbita (pai faleceu aos 79 anos), negando antecedentes familiares de doença cardiovascular, tiroideia ou auto-imune.
Ao exame objetivo, a doente apresentava-se com uma idade aparente superior à real, sudorética e normotérmica, com uma FC média entre 180 e 200 bpm. À auscultação cardíaca, destacava-se S1 e S2 arrítmicos, sem sopros aparentes, bem como, murmúrio vesicular presente bilateralmente, com crepitações bibasais, à auscultação pulmonar. Por fim, realçava-se a presença de edema simétrico dos membros inferiores até ao joelho, sem eritema. À palpação da tiroide denotava-se uma massa de consistência pétrea, móvel com cerca de 1 cm e contornos regulares no lobo direito.
Por se tratar de uma taquiarritmia com insuficiência cardíaca como sinal de gravidade, foi tentada cardioversão eléctrica, sem reversão a ritmo sinusal, tendo-se optado por iniciar amiodarona em perfusão.
Analiticamente, destaca-se elevação das transaminases (transaminase oxalacética (TGO) de 149 U/L (valores normais 0-32) e transaminase glutâmico-pirúvica (TGP) de 156 U/L (valores normais 0-31)) e lactado desidrogenase (LDH) de 567 U/L (valores normais 240-480 U/L), com função renal, parâmetros inflamatórios/infeciosos negativos, bem como, marcadores de necrose miocárdica e proBNP dentro dos valores normais (troponinas 9,81 pg/mL (valores normais 0-14) e proBNP 99 pg/mL (valores normais < 300). O estudo da função tiroideia revelou Hormona Estimulante da Tiroide (TSH) frenada 0,01 µU/ml, valor de T3 livre cerca de 4 vezes o valor normal (16,85 nmol/L) e de T4 livre também 4 vezes superior ao limite superior do normal (6,17 nmol/L).
Perante os achados clínicos e analíticos, foi admitido o diagnóstico de insuficiência cardíaca descompensada em contexto de taquiarritmia por fibrilhação auricular secundária a hipertiroidismo.
Iniciou tiamazol ainda no Serviço de Urgência, tendo sido admitida em unidade diferenciada nas primeiras 24 horas, com posterior transferência para o internamento, após estabilização clínica. Durante o restante período, manteve- se hemodinamicamente estável, assintomática, com controlo da frequência cardíaca após introdução de tiamazol (20 miligramas de 4 em 4 horas) e propranolol (60 miligramas de 4 em 4 horas).
O estudo laboratorial de parâmetros imunológicos revelou anti-Tg negativos, Anti-TPO de 206 UI/mL (6 vezes o limite superior do normal) e TRAb de 20 UI/mL (13 vezes o limite superior do normal), configurando o diagnóstico de Doença de Graves.
Foi realizada ecografia da tiróide que mostrou dimensões no limite superior da normalidade, com uma textura sugestiva de tiroidite e um aumento generalizado da vascularização, um nódulo hiperrefletivo no lobo esquerdo e dois nódulos calcificados no lobo direito, todos infracentimétricos, sem adenopatias latero-cervicais. (Fig. 1)
Durante a marcha diagnóstica, realizou ecocardiograma, que revelou dilatação biauricular, com fração de ejeção do ventrículo esquerdo preservada (55-60%).
À data de alta, a doente foi encaminhada para consulta com periocidade mensal para acompanhamento e ajuste de terapêutica.
Cerca de 6 meses após a admissão hospitalar encontrava-se assintomática, em eutiroidismo e com electrocardiograma compatível com ritmo sinusal.
Após 7 meses de seguimento, a doente iniciou queixas de dor retrobulbar bilateralmente, persistentes e com agravamento progressivo. No entanto, ao exame objetivo, nunca apresentou sinais sugestivos de exoftalmia. Pedida Tomografia Computorizada (TC) das órbitas, que confirmou o diagnóstico de Orbitopatia de Graves. (Fig. 2) Avaliada pela especialidade de oftalmologia, apresentando uma orbitopatia inativa (de acordo com o “Clinical Activity Score” do Consenso do Grupo Europeu de Orbitopatia de Graves) e ligeira no que respeita à sua gravidade.
Ao fim de 8 meses de terapêutica, em eutiroidismo, a doente apresentou edema das mãos, bilateral e simétrico, mais evidente ao nível dos metacarpos e falanges proximais, com ausência de outros sinais, tais como, hipocratismo digital. Por este motivo, realizou radiografia das mãos, evidenciando algum edema das partes moles bem como uma formação periostea irregular, ainda pouco exuberante, ao nível de todas as falanges proximais, achados radiológicos sugestivos de Acropatia de Graves. (Fig.3 a 5)
A doente mantem-se em eutiroidismo, sob terapêutica com tiamazol 5 mg/dia e com seguimento em consulta de especialidade.
DISCUSSÃO E CONCLUSÃO:
A tempestade tiroideia geralmente ocorre no contexto de um evento precipitante como trauma, stress emocional ou infeção. No entanto, pode desenvolver-se em quadros de hipertiroidismo previamente desconhecidos, como serve de exemplo o caso clínico apresentado.2-4
A agitação é uma alteração do estado de consciência do espetro do delirium, sendo suficiente para distinguir um hipertiroidismo compensado de uma crise tiroideia.
Aplicando o score de Burch e Wartofsky, a doente apresentava-se apirética (5 pontos), com taquicardia superior a 140 bpm (25 pontos), FA em resposta ventricular rápida (10 pontos), insuficiência cardíaca moderada (10 pontos), náuseas (10 pontos), agitação (10 pontos) e sem fator precipitante conhecido (10 pontos), pontuando 75 no score, que permite o diagnóstico final de tempestade tiroideia. No entanto, é de realçar que se trata de um score com elevada sensibilidade, mas baixa especificidade.4
Na abordagem deste caso, a tempestade tiroideia foi um dos diagnósticos diferenciais considerados, pelo que foi pedido o doseamento das hormonas tiroideias na sala de Emergência, durante a estabilização hemodinâmica da doente. Efetivamente, foi iniciada a toma de anti-tiroideus de síntese ainda no Serviço de Urgência, tendo-se optado por começar esta terapêutica após conhecimento dos valores laboratoriais e exclusão de diagnósticos como síndrome coronário agudo e infeção, uma vez que, a doente não apresentava sinais específicos de doença tiroideia.
Esta entidade condiciona risco de vida, sendo caracterizável como emergência endócrina. 3,4 Em mais de metade dos doentes com hipertiroidismo devidamente tratado que se apresentam com fibrilhação auricular o ritmo converte a sinusal após tratamento, como se verificou no caso clínico apresentado.4,5 No contexto do Serviço de Urgência, foi administrada amiodarona em perfusão para controlo de ritmo, ainda que não exista evidência científica da sua utilização na tempestade tiroideia.
O tratamento da tempestade tiroideia baseia-se em objetivos bem estabelecidos nomeadamente: bloqueio da síntese hormonal com administração de anti-tiroideus como o tiamazol; redução dos efeitos das hormonas tiroideias à periferia com administração de propanolol e terapêutica contra o evento precipitante (por exemplo, uma infeção), se existir.2,3
A Doença de Graves é uma doença auto-imune, que afeta predominantemente indivíduos do sexo feminino, entre os 20 e 40 anos. Nesta doença, os TRABs mimetizam a ação da TSH, estimulando ou inibindo o recetor da TSH, o que aumenta a produção de hormona tiroideia.1,2,6
Na Doença de Graves, metade dos doentes têm evidência de orbitopatia – que pode ser clinicamente percetível pela exoftalmia ou não, constituindo um critério clínico específico que pode levantar a suspeita deste quadro. A orbitopatia de Graves ocorre independentemente dos níveis das hormonas tiroideias e associa-se fortemente a citocinas e à infiltração dos músculos extraoculares por células T ativadas, o que resulta na alteração da gordura orbital e em deformações nos músculos extraoculares.2,7 Neste caso, a doente não apresentava exoftalmia, bem como, critérios de proptose na TC das órbitas mas apresentava critérios de orbitopatia infiltrativa compatível com Orbitopatia de Graves que justificava a clínica apresentada: dor retrobulbar bilateral persistente. De ressalvar que a doente tinha hábitos tabágicos no passado, fator com reconhecido impacto negativo no surgimento e agravamento da orbitopatia da Doença de Graves. Tal como se verificou, é importante, sempre que possível, solicitar a avaliação e seguimento do doente com orbitopatia, desde uma fase precoce, por um oftalmologista com experiência na patologia.
O tratamento do hipertiroidismo de Graves assenta em três opções: iodo radioativo (I-131), anti-tiroideus de síntese ou, como alternativa cirúrgica, a tiroidectomia total. A decisão terapêutica, para controle do hipertiroidismo, na doença de Graves (DG), depende de vários fatores mas, em termos gerais, a opção pela tiroidectomia total é menos frequente, quando comparada com a prescrição de anti-tiroideus de síntese ou de I-131. O tratamento preferencial em praticamente todos os doentes com Doença de Graves é o tiamazol. Recomendações internacionais sugerem que a terapêutica com tiamazol seja mantida durante 12 a 18 meses, podendo posteriormente ser reduzida ou suspensa, perante um valor de TSH normal. O doseamento sérico dos níveis de TRABs apresenta elevada sensibilidade e especificidade devendo ser realizado com intuito diagnóstico.1,2
Para além da orbitopatia, a doente desenvolveu quadro de edemas das mãos, simétrico, sobretudo ao nível dos metacarpos e falanges proximais, na ausência de sinais de artrite. Realizada radiografia das mãos que demonstrou edema dos tecidos moles e formação perióstea irregular ao nível das falanges proximais. Após exclusão de outras patologias auto-imunes como artrite reumatoide, osteoartrose com fenómenos de artrite e alterações do metabolismo fosforo-cálcio, concluiu-se tratar de uma Acropatia de Graves em fase inicial.
A acropatia constitui uma manifestação extra-tiroideia rara da Doença de Graves, afetando cerca de 0,3% dos doentes, ocorrendo semanas a anos após terapêutica.8A sua etiologia é desconhecida, no entanto, sabe-se que as hormonas tiroideias aumentam a reabsorção óssea, o que faz com que estes doentes tenham ossos mais porosos, com perda de densidade óssea, mais evidente a nível cortical.8 Esta manifestação caracteriza-se pela presença de edema, hipocratismo digital e tem como tradução imagiológica, a formação de periósteo caracteristicamente irregular e espiculado, ao nível da porção média das diáfises.8Em termos de terapêutica, para além da corticoterapia, não existem fármacos específicos. 8
Com este caso, os autores enfatizam a importância do reconhecimento precoce da tempestade tiroideia, baseado na suspeita clínica, reconhecendo a dificuldade de iniciar tratamento na ausência de doseamentos das hormonas tiroideias, em particular no caso descrito em que não existiam sinais específicos de patologia tiroideia. Destaca-se igualmente a presença de Acropatia de Graves, em fase inicial, uma manifestação rara desta patologia.
Os autores agradecem a colaboração do Dr. Rui Ferreira (MD, Assistente Hospitalar de Medicina Interna), César Alejandro Paradinha (MD, Assistente Hospitalar de Neuroradiologia) e Drª Sofia Maravilha (MD, Assistente Hospitalar de Radiologia).
Figura I

Imagens da ecografia da tiróide sugerindo tiroidite e a presença de um nódulo hiperrefletivo com 5 mm no lobo esquerdo e de dois nódulos calcificados no lobo direito, o maior com 6 mm.
Figura II

Cortes seriados de TC das órbitas sem critérios de proptose; critérios compatíveis com oftalmopatia de Graves com um inequívoco espessamento dos músculos retos mediais com dimensões transversais próximas aos 6 mm e sugestão de espessamento dos músculos rectos inferiores próximo aos ápices das órbitas.
Figura III

Discreto edema da mão direita, com ausência de sinais de hipocratismo digital.
Figura IV

Radiografia das mãos demonstrando osteopenia periarticular assim como formação periostea irregular assinalada com as setas amarelas sobretudo ao nível das falanges proximais (mais evidente na mão direita).
Figura V

Radiografia em perfil da mão direita demonstrando formação perióstea irregular sobretudo ao nível das falanges proximais (mais evidente nas 4ª e 5 ª falanges).
BIBLIOGRAFIA
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