Introdução:
A Síndrome Serotoninérgica (SS) é uma entidade clínica associada à atividade serotoninérgica aumentada no sistema nervoso central (SNC). Ocorre em consequência de interações farmacológicas ou de intoxicações medicamentosas voluntárias envolvendo fármacos serotoninérgicos, e apresenta incidência crescente nos últimos anos com o incremento da sua utilização na prática clínica.1,2,4
Surge em todos os grupos etários e a sua gravidade varia desde repercussão clínica irrelevante até falência multiorgânica e morte.1 É muitas vezes confundida com outras patologias, como a Síndrome Maligna dos Neurolépticos (SMN), a intoxicação por anticolinérgicos ou outras substâncias psicotrópicas, a hipertermia maligna e as infeções do SNC.1,2
O seu diagnóstico assenta em achados clínicos, nomeadamente, consumos farmacológicos, agitação psicomotora, disautonomia simpática e uma panóplia de alterações neuromusculares típicas.1−3
Caso Clínico:
Homem, 78 anos, com antecedentes pessoais conhecidos de: 1) Adenocarcinoma do cólon sigmoide de baixo grau submetido a sigmoidectomia, sem sinais de doença ativa à data; 2) Síndrome depressiva; 3) Síndrome demencial incipiente; 4) Episódios prévios de intoxicação medicamentosa voluntária, sem gravidade clínica, interpretados no contexto de 2) e 3). Sem história de consumo de etanol ou de outros tóxicos de forma regular. Medicado com: sertralina 50 mg/dia, quetiapina 50 mg/dia, mirtazapina 30 mg/dia, olanzapina 5 mg/dia.
Encaminhado ao Serviço de Urgência por alteração do estado neurológico, com algumas horas de evolução, marcado por agitação psicomotora e alteração do comportamento. Não existia evidência de intoxicação medicamentosa voluntária, desconhecendo-se data de início ou alteração recente da medicação habitual. Foram igualmente negados outros sintomas associados ao quadro clínico descrito.
À admissão, constatou-se taquicardia sinusal (frequência cardíaca: 130bpm), hipertensão arterial (tensão arterial: 150/100mmHg), taquipneia franca (frequência respiratória superior a 40cpm), inquietação, desorientação temporo-espacial, discurso desadequado e, por vezes, incompreensível, comportamento sugerindo alucinações visuais, bem como hiperreflexia dos quatro membros – mais evidente ao nível dos membros superiores, onde apresentava movimentos rítmicos, interpretados como clónus espontâneo. Restante exame objetivo sem alterações – a destacar: pupilas isocóricas e isoreactivas, movimentos oculocefálicos preservados e sem nistagmo, ausência de rigidez dos membros, ausência de sinais meníngeos, sinal de Babinsky ausente bilateralmente, bem como apirexia (temperatura timpânica 36.8 ºC), exame abdominal e auscultação cardiorrespiratória normais. A gasimetria arterial (ar ambiente) demonstrou alcalose respiratória: pH 7.81; pCO2 9mmHg; pO2 162mmHg; lactato 4.5mmol/L; saO2 98.9%; AG 18mmol/L; HCO3- 14.3mmol/L. Na+ 137mmol/L; K+ 2,7mmol/L; Cl- 107mmol/L. A tomografia computadorizada crânio-encefálica não revelou alterações. As análises não apresentaram valores alterados da função renal, aumento de parâmetros inflamatórios ou outros desequilíbrios eletrolíticos, e o exame toxicológico foi negativo para álcool, anfetaminas e cocaína.
O início abrupto de agitação psicomotora, a disautonomia simpática e o clónus, associados ao consumo de fármacos com ação serotoninérgica – quer por inibição da recaptação da serotonina (sertralina), quer por aumento da sua libertação (mirtazapina), quer por agonismo parcial dos seus receptores (quetiapina e olanzapina) – levantaram a suspeita de Síndrome Serotoninérgica. A ausência de hipertermia/febre, sinais meníngeos e de sintomas extrapiramidais, bem como a exclusão de alterações estruturais e de intoxicação por substâncias toxifílicas, vieram corroborar este diagnóstico.
Foi administrada terapêutica sedativa com midazolam por via endovenosa, titulado até dose máxima de 7 mg em 5 minutos. Foi realizada também reposição endovenosa de potássio. Verificou-se uma evolução clínica favorável, com estabilidade hemodinâmica, cessação da agitação psicomotora e do clónus e melhoria dos distúrbios ácido-base (gasimetria arterial de reavaliação: pH 7.45; pCO2 31mmHg; lactato 3.3mmol/L, HCO3- 21.5mmol/L; K+ 4.0mmol/L).
O doente permaneceu em vigilância e foi reavaliado pelas especialidades de Neurologia e Psiquiatria, optando-se pela suspensão da sertralina e da quetiapina.
Discussão:
Uma vez que não existem marcadores laboratoriais específicos, o diagnóstico da Síndrome Serotoninérgica exige alta suspeição clínica e exclusão de outras etiologias. Os Critérios de Hunter constituem um importante algoritmo diagnóstico para esta síndrome. Requerem a utilização de, pelo menos, um agente serotoninérgico em associação a um ou mais dos seguintes achados: 1) clónus espontâneo; 2) clónus induzido ou ocular e agitação ou diaforese; 3) tremor e hiperreflexia; 4) tónus aumentado e febre e clónus induzido ou ocular. Neste caso clínico, estão presentes dois achados preponderantes e que constituem Critérios de Hunter, consentindo o diagnóstico: história de medicação com agentes serotoninérgicos e a presença de clónus espontâneo bilateral. Este último é um sinal característico de um reduzido número de entidades clínicas, e possibilita reduzir o leque de diagnósticos diferenciais.1,2,4
No entanto, é de notar que:
- A presença de alcalemia respiratória no contexto de taquipneia franca, integrada em conjunto com os outros sinais de disautonomia simpática, compõe um dos elementos mais característicos da SS, fazendo, no entanto, diagnóstico diferencial com a Síndrome Maligna dos Neurolépticos. Especificamente, a SMN distingue-se pelos fármacos envolvidos na sua génese (antagonistas da dopamina), pela evolução tendencialmente mais insidiosa, em dias a semanas (em oposição ao início tipicamente abrupto da SS), e por provocar reações extrapiramidais (com rigidez muscular importante, em vez de clónus e hiperatividade).1,2
- A intoxicação medicamentosa por anticolinérgicos, cocaína ou anti-histamínicos, também pode levar a alterações graves do estado cognitivo e disautonomia simpática. Neste caso clínico, o exame toxicológico foi negativo e não existia história de consumos prévios destas substâncias. Para além disso, a intoxicação por estas substâncias, em especial por anticolinérgicos, distingue-se da SS pela preservação do tónus muscular, presença de xerostomia e hiperemia generalizada e ausência de ruídos hidroaéreos abdominais – que não foram descritos no exame objetivo da admissão deste doente.1,2
- A hipertermia maligna, a encefalite e a meningite são outros diagnósticos diferenciais a ter em conta, contudo a apresentação clínica do caso descrito não os sugeria (i.e.: ausência de febre e de outros sinais de infeção e, novamente, a presença de clónus).1
- Por fim, um quadro de delirium tremens caracterizar-se-ia também por alteração do estado mental e por disautonomia simpática. Porém, não é compatível com a do caso apresentado, e, apesar de poder induzir tremor generalizado, não seria expectável que o doente apresentasse clónus.
O tratamento da SS compreende medidas de suporte, sedação com benzodiazepinas e suspensão dos fármacos causadores. Neste caso clínico, a sedação com midazolam foi suficiente para controlar o quadro de agitação e de disautonomia, contudo, em situações mais graves, podem ser usados antagonistas serotoninérgicos (ex.: ciproheptadina).2 É de ressalvar a importância de não ter sido realizada, precipitadamente, uma sedação com fármacos de uma classe diferente (ex.: antipsicóticos) – que, neste contexto clínico, poderiam agravar o estado clínico do doente.4
Conclusão:
A SS é uma entidade com uma ampla variedade de apresentações, nomeadamente no que se refere à sua gravidade, podendo ser fatal ou motivar internamento em unidade de cuidados intensivos.
O seu diagnóstico é clínico e deve ser considerado em casos de agitação psicomotora associada a disautonomia simpática, em doentes sob terapêutica precipitante deste quadro.
Distingue-se de outras entidades pela presença de ativação neuromuscular, pautada por hiperreflexia, clónus e tónus muscular aumentado, que não existem em doentes com intoxicações por simpaticomiméticos ou infeções do sistema nervoso central.
O reconhecimento precoce associa-se a um melhor prognóstico.
BIBLIOGRAFIA
1. Scott WJ, Hill LJ, Williams AC, Barnes NM. Serotonin Syndrome: Pathophysiology, Clinical Features, Management, and Potential Future Directions. International Journal of Tryptophan. 2019: Volume 12: 1-14. DOI: 10.1177/1178646919873925
2. Boyer EW, Shannon, M. The Serotonin Syndrome. NEJM. 2005. Volume 352: 1112-1120. DOI: 10.1056/NEJMra041867
3. Buckley NA, Dawson AH, Isbister GK. Serotonin syndrome. BMJ. 2014. Volume 348: 162. DOI: 10.1136/bmj.g1626
4. Racz R, Soldatos TG, Jackson D, Burkhart K. Association Between Serotonin Syndrome and Second‐Generation Antipsychotics via Pharmacological Target‐Adverse Event Analysis. Clin Transl Sci. 2018. Volume 11(3):322-329. DOI:10.1111/cts.12543