Introdução: A púrpura trombocitopénica imune (PTI) é uma doença hematológica adquirida e imuno-mediada que pode surgir tanto em idade pediátrica como nos adultos. É caracterizada por uma diminuição do número de plaquetas, resultante da destruição das plaquetas e diminuição da produção de plaquetas,1 causada por uma reação imune desconhecida. Pode ocorrer de forma isolada, tratando-se de trombocitopenia imune primária, ou associada a outra patologia, trombocitopenia imune secundária. A prevalência da PTI na idade adulta é 5 a 20 casos por 100.000 habitantes6. A apresentação clínica pode incluir lesões mucocutâneas como petéquias, equimoses, hematomas bem como epistaxis e gengivorragias. O prognóstico está associado ao risco de hemorragia espontânea, sendo que 5% dos doentes apresentam risco de hemorragia fatal.2 Nos doentes idosos, os episódios de complicações hemorrágicas major são particularmente importantes.
Caso Clínico: Doente de 79 anos, sexo masculino, autónomo nas atividades de vida diária. Antecedentes pessoais conhecidos de epilepsia. Medicado habitualmente com lamotrigina 100 mg 1 comprimido ao almoço e amissulprina 50 mg 1 comprimido ao pequeno almoço há mais de 10 anos. Sem alergias conhecidas. O doente recorreu ao Serviço de Urgência por quadro de início espontâneo de hemorragia gengival e da língua, sem traumatismo ou mordedura associados, com 3 dias de evolução. Surgiram também equimoses e petéquias dispersas pelo tronco e membros. Negava febre, cansaço ou perda ponderal, tosse, expectoração ou hemoptises. Sem menção de aumento de gânglios. Negava artralgias ou alteração da força muscular. O Doente negava ainda hábitos etanólicos e toxicofílicos ou alteração recente da terapêutica habitual. Sem patologia hematológica conhecida. Sem história familiar de doenças hematológicas ou auto-imunes conhecidas.
À observação no Serviço de Urgência o doente apresentava tensão arterial 146/89 mmHg, frequência cardíaca de 104 batimentos por minuto, saturação periférica de O2 de 96% em ar ambiente e estava apirético. Encontrava-se vigil, consciente, orientado no tempo, espaço e pessoa. Mucosas descoradas, mas hidratadas. Eupneico sem sinais de desconforto respiratório. Auscultação cardíaca com tons rítmicos e regulares, a nível pulmonar com murmúrio vesicular mantido e simétrico, sem ruídos adventícios. Abdómen encontrava-se indolor à palpação, sem hepatomegalia ou esplenomegalia, não se palpavam massas. Membros inferiores sem edemas, mas com petéquias dispersas (Fig. 1). Não se palpavam adenomegalias. A nível da orofaringe apresentava gengivorragia e lesões a nível da porção lateral da língua com hemorragia activa (Fig. 2). Observavam-se ainda equimoses e hematomas dispersos por todo o corpo, sobretudo nas zonas de pressão, nomeadamente nos membros superiores, ombro, dorso. No esfregaço de sangue periférico não se observavam plaquetas, confirmando trombocitopenia grave. O valor de hemoglobina era de 12,7 g/dL, sem alterações da série eritrocitária, e sem alterações na fórmula leucocitária. As provas de coagulação também não apresentavam alterações de relevo: tempo de protrombina de 11,7 segundos, INR 0,98 e aPTT 1.21 (0,80-1,20), fibrinogénio 433 mg/dL (184-480). O valor de lactato desidrogenase era aumentado (280 U/L) bem como a creatina quinase 1130 U/L, sem elevação da creatinaquinase MB massa (4,4 ng/mL). Restante avaliação laboratorial: Creatinina 0,9 mg/dL, Ureia 62,9 mg/dL, Natrémia 139 mEq/L, Potássio 4,2 mEq/L, Cloro 105 mEq/L. Bilirrubina 0,6 mg/dL, Aspartato aminotransferase 41 U/L, Alanina aminotransferase 29 U/L, Fosfatase alcalina 120 U/L, Gama glutamil transferase 18 U/L. Proteina C reactiva era 0,71 mg/dL.
O doente ficou internado no serviço de Medicina Interna com hipótese diagnóstica de púrpura trombocitopénica de etiologia imune. Foi pedida a pesquisa de anticorpos anti-plaquetários que se revelaram positivos. Restante estudo etiológico excluiu outras causas de trombocitopénia, nomeadamente estudo de auto-imunidade, função tiroideia normal, serologias infecciosas negativas, nomeadamente Vírus da imunodeficiência humana, Vírus de Hepatite B e C, Parvovírus, Citomegalovírus, Epstein-Barr e Pesquisa de SARS-CoV-2. Não se encontrou défices vitamínicos (cinética do ferro normal, e vitamina B12 e folatos dentro da normalidade).
Dada a evidência de lesões hemorrágicas e gengivorragias realizou à admissão transfusão de 1 pool de plaquetas pelo risco de hemorragia ameaçadora de vida. Iniciou corticoterapia com dexametasona 40 mg por via endovenosa. Às 48 horas após admissão, por manter ausência de plaquetas em hemograma, foi iniciada Imunoglobulina (Ig) endovenosa na dose de 1 g/kg/dia para o peso de 80kg. Após duas tomas de imunoglobulina, ao quarto dia de internamento, verificou-se melhoria da trombocitopenia, com os valores de plaquetas a subir para 5x10^9/L e depois 21x10^9/L. Verificou-se ainda a resolução das lesões hemorrágicas, nomeadamente a nível da língua (Fig. 3). Assim, suspendeu a dexametasona e imunoglobulina e passou a realizar prednisolona oral 1 mg/Kg. O doente manteve resposta favorável, sem evidência de recidiva de discrasia hemorrágica. Houve melhoria dos valores de plaquetas de forma progressiva, pelo que o doente teve alta ao sexto dia de internamento com 64x10^9/L de plaquetas e estabilidade clínica. Não se verificaram outras intercorrências no internamento.
Uma semana após alta foi reavaliado em consulta externa. Encontrava-se sob desmame progressivo de prednisolona, não se observaram sinais de discrasia hemorrágica, mas ainda mantinha algumas petéquias e equimoses nos membros inferiores (em resolução). O valor de plaquetas era já de 82x10^9/L. Duas semanas depois da alta, o doente já não apresentava trombocitopénia e sem equimoses ou petéquias observáveis na consulta.
Discussão: Na presença de trombocitopéniade novoisolada, é fundamental excluir outras causas de diminuição do número de plaquetas até chegar ao diagnóstico da PTI.3 Neste caso, foram excluídas outras causas possíveis, nomeadamente infecciosas, endócrinas, défices vitamínicos, fármacos... A pesquisa de anticorpos anti-plaquetários, que se revelaram positivos, foi mais um dado a favor da etiologia auto-imune neste caso de trombocitopenia.
É recomendado iniciar tratamento quando o doseamento de plaquetas inferior a 30.000, mesmo na ausência de discrasia hemorrágica significativa.1,4 É concordante que a primeira linha de terapêutica são corticóides. A sociedade Americana de Hematologia recomenda em doentes adultos com PTI recém diagnosticada o uso de prednisona (0,5-2,0 mg/kg por dia) ou dexametasona (40 mg por dia por 4 dias) como terapêutica inicial.1 Dados mais recentes são favoráveis a cursos curtos de altas doses de dexametasona face a prednisolona, e parece estar associada a inferior toxicidade.5 A imunoglobulina endovenosa tem eficácia semelhante aos corticóides, e é preferida nos casos em que é necessário o rápido aumento do número de plaquetas,5 casos de hemorragia severa ou necessidade de procedimentos invasivos4. Neste caso clínico, apesar de inicialmente ter sido feito esquema inicial de dexametasona, foi posteriormente iniciada Ig 1g/kg, momento a partir do qual verificou-se melhoria dos valores plaquetários de forma sustentada. Outras alternativas terapêuticas, como segunda-linha, podiam englobar rituximab, anticorpo monoclonal anti-CD20 ou esplenectomia. Esta opção cirúrgica parece resultar em remissão completa em ⅔ dos doentes, no entanto aumenta o risco de trombose e infecção nomeadamente a microrganismos encapsulados3. Por outro lado, existem também os análogos dos receptores da trombopoietina, romiplostim e eltrombopag, que estimulam a produção plaquetária a nível medula óssea através da produção de megacariócitos. Estes podem ser usados em doentes que não responderam a esplenectomia ou aos anticorpos monoclonais. Já foram usados em casos de PTI crónica e permitem taxas remissão até 80%.4
Conclusão: A PTI é uma patologia que se caracteriza pela destruição plaquetária por mecanismo imune. Este caso demonstra a importância da elevada suspeita clínica num doente que se apresente com quadro de discrasia hemorrágica. Mostra também que a PTI é um diagnóstico de exclusão, sendo fundamental iniciar o tratamento necessário o mais precocemente possível, para o melhoroutcomedo doente.
Figura I

Figura 1 - Pétequias dispersas pelos membros inferiores à admissão no Serviço de Urgência
Figura II

Figura 2 - Lesões hemorrágicas a nível da porção lateral da língua com hemorragia activa (laboratorialmente com ausência de plaquetas no esfraço de sangue periférico)
Figura III

Figura 3 - Resolução das lesões hemorrágicas ao 4º dia de internamento, após iniciar corticoterapia e duas tomas de Imunoglobulina, com recuperação do valor de plaquetas para 21.000
BIBLIOGRAFIA
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2 - Sugiura T., Yamamoto K., Murakami K., Horita S., Matsusue Y., Nakashima C., Kirita T. Immune Thrombocytopenic Purpura Detected with Oral Hemorrhage: a Case Report. J Dent Shiraz Univ Med Sci., 2018 June; 19(2): 159-163.
3 - Zainal A., Salama A., Alweis R. Immune thrombocytopenic purpura. Clinical Imaging. Journal of Community Hospital Internal Medicine Perspectives. 2019, Vol, No 1, 59-61
4 - Bohn, J. Steurer, M. Current and evolving treatment strategies in adult immune thrombocytopenia. Magazine of European Medical Oncology. 2018. 11:241-246
5 - Mithoowani S., Gregory-Miller K., Goy J. et al. High-dose dexametasona compared with prednisolone for previously untreated primary immune thrombocytopenia: a systematic review and meta-analysis. Lancet Haematology. 2016; 3:e489-e966 - Ejaz A., Radia D. Diagnosis and management of primary immune thrombocytopenia in adults. Core Training. British Journal of Hospital Medicine; April 2019; Vol 80, No 4