INTRODUÇÃO:
A deficiência de alfa-1-antitripsina (DAAT), uma doença autossómica co-dominante, foi descrita pela primeira vez em 1963 por Carl-Bertil Laurell e Sten.1,2,3 É provocada por várias mutações no gene SERPINA1 do cromossoma 14, que causam uma diminuição da concentração sérica de alfa-1 antitripsina e carateriza-se por doença pulmonar, hepática e, menos frequentemente cutânea.2,4,5A DAAT é uma doença genética frequente, mas muitas vezes subdiagnosticada, estimando-se uma prevalência na Europa de cerca de 1 em cada 2.000 indivíduos.5,6 A alfa 1 antitripsina (AAT) é uma proteína da família das serpinas, sintetizada maioritariamente nos hepatócitos.3,7 A sua principal função é a inibição de proteases, com especial ação na elastase neutrofílica, impedindo assim a degradação enzimática das estruturas alveolares. 6,8
Existem atualmente mais de 120 alelos identificados que seguem um sistema de codificação específico, no qual as variantes herdadas de DAAT são classificadas de acordo com a sua mobilidade eletroforética.5 O alelo normal é denominado por M, sendo que em populações caucasianas as variantes com mutação Z e S são as mais frequentes.2 O alelo Z é mais prevalente nos países escandinavos e o alelo S em Espanha e Portugal.1
As variantes com a mutação Z são as que mais vezes provocam doença, sendo que mais de 90% dos indivíduos com deficiência clínica apresentam o genótipo ZZ.9 A mutação causa alterações conformacionais na proteína AAT, promovendo a polimerização e acumulação no interior dos hepatócitos, com consequente redução dos níveis séricos, condicionando respetivamente doença hepática e pulmonar.9 O alelo S está associado a alterações pulmonares.6 No entanto, outros alelos mais raros estão associados a níveis séricos significativamente reduzidos ou ausentes, sendo o mais comum a variante Mmalton.2,10
O diagnóstico de DAAT envolve o doseamento das concentrações séricas de AAT (por nefelometria).9 É importante ressalvar que os diferentes alelos determinam uma diferença na produção da proteína AAT e por isso existem níveis séricos esperados para cada fenótipo, tal como se pode verificar na Tabela 1. 5,11 Este resultado deve ser apoiado por testes qualitativos que permitam a identificação das mutações genéticas, como a fenotipagem por focagem isoelétrica e a genotipagem.2,9
CASO CLÍNICO:
Os autores apresentam o caso de um jovem de 27 anos, do sexo masculino, responsável pelo armazém numa empresa de moldes de plástico. Sem antecedentes pessoais relevantes e negava ingestão habitual de fármacos ou de suplementos naturais. O paciente referia hábitos tabágicos (cerca de 5 unidades maço ano) e consumo regular de cerveja aos fins-de-semana (aproximadamente 75 grs de etanol por dia). Negava consumo de outras drogas. Negava antecedentes familiares de relevo.
Referenciado à consulta de Medicina Interna em 2018, por apresentar dor epigástrica com 1 ano de evolução, sem associação com fatores de alívio ou agravamento. Negava alterações do trânsito intestinal e sintomas constitucionais. Ao exame objetivo não apresentava estigmas de hepatopatia e o abdómen era mole e depressível, sem organomegálias palpáveis. Na Tomografia Computorizada (TC) do abdómen realizada em ambulatório evidenciava-se aumento das dimensões hepáticas com cerca de 18 cm de extensão longitudinal na linha medio-clavicular, de contornos regulares, com aumento discreto do calibre da veia porta (16 mm) e esplenomegália (14,5x13.4x6,2cm).
Do estudo realizado em consulta, destacam-se os seguintes resultados analíticos, descritos mais detalhadamente na Tabela 2: trombocitopenia, transaminases normais, fosfatase alcalina e gama-GT normais, hiperbilirrubinémia indireta.
Dos restantes exames complementares descritos na Tabela 3, destaca-se o estudo do metabolismo do ferro que se revelou normal, o doseamento de ceruloplasmina baixo. Foi realizada a determinação dos anticorpos relacionados com doenças hepáticas auto-imunes cujos resultados foram negativos. A imunoeletroforose de proteínas séricas não apresentava alterações. As serologias para hepatites A e C eram negativas e apresentava imunidade para Hepatite B. O esfregaço de sangue periférico e a imunofenotipagem leucocitária não evidenciaram alterações.
O doseamento sérico AAT, realizado por nefelometria, demonstrou um valor reduzido de 43 mg/dL [normal: 88–174 mg/dL]. Tendo em consideração este resultado, foi pedida a fenotipagem que revelou a presença do alelo S (Pi*MS). Posteriormente, e dada a discordância deste resultado com os achados imagiológicos, optou-se pela realização da genotipagem para excluir a presença de uma variante rara, tendo o resultado revelado a presença do alelo raro Mmalton (Pi*SMmalton).
A radiografia do tórax e a TC do tórax não evidenciaram alterações do parênquima pulmonar. O estudo funcional respiratório não demonstrava alterações. Foi realizada endoscopia digestiva alta com biópsias gástricas, cujo estudo anátomo-patológico demonstrou sinais de gastrite crónica severa não atrófica e presença de formas helicoidais sugestivas de infeção por Helicobacter pylori. A elastografia hepática não revelou sinais de fibrose (F0).
Foi realizado o rastreio familiar, tendo sido verificado o seguinte:
- Pai com 58 anos de idade, assintomático. Seguido em consulta de Gastroenterologia por atrofia gástrica severa e extensa metaplasia intestinal. Doseamento sérico de AAT normal de 93 mg/dL. Realizada genotipagem que revelou presença do alelo MMalton (Pi*M1Mmalton). Radiografia torácica, provas funcionais respiratórias e ecografia abdominal sem alterações.
- Mãe com 58 anos de idade, assintomática. Doseamento sérico de AAT normal de 107 mg/dL. Realizada genotipagem que revelou presença do alelo S (Pi*M1S). Radiografia torácica e provas funcionais respiratórias sem alterações.
- Irmão gémeo monozigótico, assintomático. Doseamento sérico de AAT reduzido de 45 mg/dL (apresentava ainda trombocitopenia e hiperbilirrubinémia indireta). Genotipagem revelou a presença do Pi*SMMalton. Radiografia torácica e provas funcionais respiratórias sem alterações.
- Irmão com 34 anos, assintomático. Doseamento sérico de AAT normal de 109 mg/dL. Genotipagem com identificação do alelo S (Pi*M1S). Radiografia torácica e provas funcionais respiratórias sem alterações.
O doente foi orientado para consulta de Pneumologia e Gastroenterologia onde mantém seguimento e vigilância, não cumprindo critérios para iniciar terapêutica de substituição.
DISCUSSÃO:
A variante Mmalton foi descrita pela primeira vez por Cox em 1976, e está associada a DAAT grave, com presença de inclusões hepáticas semelhante ao que se observa na variante Z.2,4 Carateriza-se por um padrão eletroforético semelhante à variante M (normal), sendo que uma análise fenotípica isolada pode identificar essas variantes como normais e assim atrasar o diagnóstico definitivo.2,10 Por esse motivo, é importante que o clínico possa reconhecer estas situações, particularmente aquelas cujos níveis séricos de AAT e o fenótipo identificado são discrepantes.
As manifestações clínicas são muito variáveis entre doentes.1 Ao contrário da doença pulmonar, que é tipicamente um distúrbio da idade adulta, a doença hepática pode ocorrer ao longo da vida.5
Tal como já referido, o diagnóstico de DAAT é frequentemente tardio, protelando desta forma o aconselhamento sobre alterações de estilo de vida e em alguns casos o início da terapêutica de substituição. Por este motivo sugere-se que o rastreio para DAAT deva ser realizado em algumas situações, tais como: enfisema precoce (idade < 45 anos) ou enfisema sem fatores de risco; enfisema panlobular de predomínio basal; Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica; asma sem resposta a terapêutica; adultos com bronquiectasias; adolescentes com testes de função pulmonar mostrando obstrução persistente; história familiar de dispneia e tosse crónica; doença hepática sem causa; e adultos com paniculite necrotizante.5,9 A European Respiratory Society, recomenda que após a identificação de um caso índice seja realizado o estudo aos familiares em primeiro grau.9
Os estudo demonstram que indivíduos com níveis séricos de AAT < 50 mg/dL apresentam maior risco de doença pulmonar.5 O enfisema pulmonar é geralmente do tipo panlobular, afetando em cerca de 2/3 dos doentes as regiões basais, contrastando assim com o enfisema associado ao tabagismo.5 A exposição ambiental é determinante para a evolução da doença, principalmente para o desenvolvimento de patologia pulmonar, salientando-se o tabagismo, as infeções e a exposição ocupacional e ambiental como os fatores mais preponderantes.5,9
O caso descrito pretende chamar a atenção para uma doença que atualmente é considerada como subdiagnosticada. Para além disso, é importante ter em consideração a aplicação do algoritmo de diagnóstico para o DAAT. Neste caso em particular, o valor reduzido de AAT encaminhou à identificação através da fenotipagem do Pi*MS, o que tendo em consideração o envolvimento hepático (não compatível com o fenótipo S) e a não concordância entre os níveis de AAT e o resultado da fenotipagem, conduziu à necessidade de excluir a presença de um alelo raro.
A deteção atempada da variante Mmalton é essencial pelo facto que os doentes com genótipos homozigotos Mmalton ou Pi*ZMmalton, com evidência de enfisema pulmonar podem ser candidatos a receber terapia de substituição.2 Mesmo alguns doentes com genótipo Pi*SMmalton que apresentem níveis séricos muito reduzidos de AAT, poderão cumprir os critérios para iniciar a terapêutica.2
Quadro I
Fenótipo e concentrações esperadas de AAT [11]
Fenótipo | Concentração plasmática de AAT | Risco de Enfisema | Risco de doença hepática |
mg/dL | |||
MM | 103-200 | Sem aumento | Sem aumento |
MS | 100-180 | Sem aumento | Sem aumento |
SS | 70-105 | Sem aumento | Sem aumento |
MZ | 66-120 | Possível ligeiro aumento | Ligeiro aumento |
SZ | 45-80 | Ligeiro aumento | Ligeiro aumento |
ZZ | 10-40 | Alto risco | Alto risco |
Null | 0 | Alto risco | Sem aumento |
Tabela adaptada [11]. Material e copyright da Sociedad Española de Neumologia y Cirurgía Torácica (SEPAR)
Quadro II
Avaliação laboratorial geral
Resultado analítico | Intervalo de referência | |
Leucócitos (/µL) | 7300 | [4000-10000] |
Neutrófilos (/µL) | 3400 | [1800-8000] |
Linfócitos (/µL) | 1500 | [1500-6500] |
Hemoglobina (g/dL) | 16,8 | [13,0-17,7] |
Hematócrito (%) | 48,4 | [39,0-54,0] |
VCM (fL) | 88,2 | [80,0-100,0] |
HCM (pg) | 30,6 | [>27,0] |
Plaquetas (/µL) | 132000 | [150000-500000] |
Tempo protrombina (seg) | 12,5 | [9,4-12,5] |
INR | 1,13 | [0,50-3,00] |
Sódio (mmol/L) | 142 | [136-146] |
AST (U/L) | 24 | [3-45] |
ALT (U/L) | 28 | [15-50] |
Bilirrubina total (µmol/L) | 26,2 | [5,0-21,0] |
Bilirrubina indireta (µmol/L) | 18,9 | [1,7-17,1] |
LDH (U/L) | 141 | [100-247] |
Fosfatase alcalina (U/L) | 56 | [30-120] |
GGT (U/L) | 15 | [<55] |
Colesterol Total (mg/dL) | 122 | [<190] |
Triglicéridos (mg/dL) | 67 | [<150] |
Quadro III
Estudo etiológico
Resultado analítico | Intervalo de referência | |
Ceruloplasmina sérica (mg/dL) | 20 | [22-58] |
Cobre urinário (µg/L) | 8 | [2-80] |
Alfa 1-antitripsina | 43 | [88-174] |
Ferro (µmol/L) | 34,6 | [11,6-31,3] |
Saturação de transferrina (%) | 50,1 | [10,6-69,2] |
Ferritina (ng/mL) | 251,7 | [23,9-336,2] |
Ac. Anticitoplasma de neutrófilo | Negativo | |
Ac. Anti-nucleares | Negativo | |
Ac. Anti-mitocondrial | Negativo | |
Ac. Anti-músculo liso | Negativo |
BIBLIOGRAFIA
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