INTRODUÇÃO
A paniculite pancreática (PP) é uma forma rara de atingimento cutâneo observado em 2-3% dos doentes com patologia pancreática, nomeadamente pancreatite aguda ou crónica e tumores [1]. A PP é caracterizada clinicamente pela presença de nódulos eritematosos subcutâneos, dolorosos à palpação, que podem evoluir para úlceras e que aparecem preferencialmente nos membros inferiores [2].
Concomitantemente às alterações cutâneas pode existir atingimento articular e ósseo, caracterizado clinicamente por dor e edema de predomínio nas articulações distais. A poliartrite pancreática é um sintoma raro e invariavelmente associado a envolvimento cutâneo.
Fisiopatologicamente, ambas as apresentações descritas parecem resultar do aumento sérico das enzimas pancreáticas, que se depositam a nível articular/ósseo e no tecido adiposo, que resulta na necrose destas células, facto que é observado histologicamente [3].
O síndrome pancreatite, paniculite e poliartrite (PPP) está descrito quase exclusivamente em doentes com doença pancreática, com um vasto espectro de etiologias possíveis como: pancreatite aguda, pancreatite crónica, carcinoma de células acinares e tumores neuroendócrinos [1-4]. O carcinoma de células acinares, que representa 1-2% das neoplasias pancreáticas em adultos, é a neoplasia mais frequentemente associada ao PPP [4].
CASO CLÍNICO
Os autores apresentam o caso de um doente do sexo masculino, 51 anos, admitido no Serviço de Urgência por quadro com 2 semanas de evolução de dor articular de predomínio matinal e melhoria progressiva com a mobilização, referida aos tornozelos bilateralmente, joelho direito e segunda articulação interfalângica proximal da mão esquerda, associado uma semana depois ao aparecimento de lesões cutâneas nodulares, eritematosas e dolorosas (Fig 1). Tratava-se de um doente sem antecedentes patológicos conhecidos e sem terapêutica regular em ambulatório.
À observação salientava-se palidez mucocutânea e nódulos eritematoacastanhados, subcutâneos com cerca de 2-3 cm e mais evidentes nos membros inferiores, dolorosos à palpação, sem alterações epidérmicas significativas, sem ulceração. O joelho direito apresentava-se edemaciado, sem rubor ou calor, com dor à mobilização ativa e passiva.
Ao nível da história clínica e restante exame objetivo não foram encontrados outros achados de relevo, nomeadamente anorexia, perda ponderal, febre, sintomatologia abdominal, adenomegalias, esplenomegalia e hepatomegalia.
Foi realizado estudo analítico que revelou anemia (Hemoglobina 11.9 g/dL) normocítica e normocrómica, com leucograma e plaquetas normais, VS 103 mm, aumento da proteína C reativa 9.79 mg/dL. Aumento da lipase sérica (>12074 U/L; N 8-78 U/L), com amilase 76 U/L. Função renal normal (Ureia 21,2 mg/dL, Creatinina 0,6 mg/dL), sem elevação da bilirrubina, transaminases, LDH ou fosfatase alcalina (Bilirrubina total 0.5 mg/dL, AST 19 U/L, ALT 15 U/L, FA 85 U/L, LDH 219 U/L, gama-GT 42 U/L).
Tendo em conta os achados analiticos realizou tomografia computorizada abdomino-pélvica com contraste que demonstrou “(...) hepatomegalia heterogénea, com múltiplas lesões mal delimitadas, hipodensas e hipocaptantes, algumas com áreas internas de densidade hídrica, com suspeita de malignidade em provável contexto de lesões secundárias; sem dilatação das vias biliares intra e extra-hepática; pâncreas apresenta porção cefálica algo heterogénea, restante parênquima pancreático com captação homogénea, sem alterações patognomónicas de pancreatite aguda (...),” (Fig 2).
O doente foi internado para controlo sintomático e estudo etiológico, tendo sido efetuada biópsia cutânea de um dos nódulos do membro inferior direito que demonstrou aspectos morfológicos compatíveis com paniculite pancreática (Fig 3).
Foi realizada também biópsia às lesões hepáticas com características suspeitas de secundarismo, tendo sido admitido no exame anatomopatológico tratar-se de metástase hepática de carcinoma de células acinares.
Durante o internamento verificou-se agravamento dos sinais inflamatórios do joelho direito e necessidade de artrocentese para diagnóstico etiológico e controlo álgico. A análise bioquímica do líquido articular demonstrou tratar-se de um exsudado com LDH >7500U/L e com impossibilidade de contagem de células, não tendo sido contudo realizado doseamento de lipase. Não se verificou crescimento de microorganismos no exame bacteriológico.
Considerado o descrito, foi colocada a hipótese diagnóstica de PPP em contexto de carcinoma de células acinares do pâncreas, com metastização hepática.
O caso clínico foi discutido em Consulta de Decisão Terapêutica (CDT), tendo sido decidido o início de quimioterapia por impossibilidade de abordagem cirúrgica. Contudo, ao longo do internamento verificou-se agravamento progressivo do estado geral com astenia, anorexia, perda de peso (20kg em 2 meses) e dor articular de difícil controlo, associado a disfunção neurológica com letargia e evolução com disfunção hepática.
Tendo em conta o estadio avançado da neoplasia com disfunção múltipla de órgão, decidido novamente em CDT indicação para terapêutica sintomática.
O doente teve alta para Unidade de Cuidados Paliativos, tendo vindo a falecer cerca de 3 meses após diagnóstico.
DISCUSSÃO
O caso apresentado descreve o síndrome pancreatite, paniculite e poliartrite, uma apresentação rara de neoplasia de células acinares. Atualmente, o mecanismo fisiopatológico que conduz ao aparecimento das alterações cutâneas, articulares e ósseas definidas como PPP é pouco conhecido. O aumento das enzimas pancreáticas, como a lipase, amilase e tripsina, resultante da lesão de células do pâncreas parece condicionar uma libertação excessiva de ácidos gordos dos adipócitos, o que leva à necrose destas células. A destruição periférica do tecido adiposo traduz-se clinicamente por paniculite e poliartrite e, menos frequentemente, necrose da gordura abdominal, derrame pleural e necrose medular [5].
No caso descrito verificou-se elevação da lipase sérica, resultante da libertação desta enzima do pâncreas e do tecido pancreático metastático, conduz a lipólise e necrose do tecido adiposo subcutâneo com aumento da resposta inflamatória local e, consequente aparecimento da dor e dos sinais inflamatórios locais. A fisiopatologia associada à poliartrite pancreática parece assentar no mesmo mecanismo, com evidência da presença de lipase no líquido sinovial nas articulações afetadas [6]. A tripsina, outra enzima pancreática, parece atuar como facilitador de acesso da lipase aos tecidos periféricos, apesar de não doseada no caso clínico descrito.
A paniculite pancreática apresenta-se clinicamente com nódulos cutâneos eritematosos de predomínio nos membros inferiores, com ou sem dor associada e que, quando em associação com carcinomas, têm tendência a migrar para braços e tronco e a ulcerar.
O diagnóstico diferencial deve ser feito com outras paniculites inflamatórias, como o eritema nodoso e o eritema induratum, poliarterite nodosa e paniculite infeciosa. Tendo em conta o espectro de diagnósticos diferenciais, a biópsia cutânea e exame anatomopatológico do tecido afetado continuam a ser essenciais para o diagnóstico definitivo [7].
O atingimento articular no síndrome PPP é normalmente poliarticular e simétrico, atingindo os tornozelos, joelhos e pequenas articulações das mãos, como no caso descrito. No diagnóstico diferencial de poliartrite devem ser considerados a artrite gotosa e a artrite reativa.
Nos doentes com PPP secundária a carcinoma pancreático, a remoção cirúrgica da neoplasia é o único tratamento que corrige a paniculite e poliartrite. Contudo, se existir doença localmente avançada ou metastizada à data do diagnóstico, a intervenção cirúrgica pode não ser possível. A quimioterapia, com ou sem radioterapia, é a terapêutica de eleição nestes doentes.
O octreotido, por inibir a produção de enzimas pancreáticas, parece ter algum efeito na melhoria da paniculite, contudo este efeito não se verifica em todos os doentes. Apesar de utilizados empiricamente para controlo sintomático, os corticoides orais e anti-inflamatórios não esteróides não são eficazes na resolução das manifestações cutâneas e articulares.
Na presença de paniculite pancreática e poliartrite, a doença pancreática deve ser equacionada mesmo em doentes de outro modo assintomáticos, uma vez que as lesões cutâneas, articulares e ósseas podem anteceder os sintomas constitucionais e abdominais em 40% casos [8].
Na situação clínica descrita a paniculite pancreática e poliartrite são resultado de carcinoma de células acinares. Como anteriormente referido, este tipo de neoplasia é rara, correspondendo a 1-2% de todos os casos de tumores malignos do pâncreas. É contudo a neoplasia mais frequentemente associada à síndrome PPP [4].
O prognóstico da entidade descrita depende da doença de base e da extensão da necrose adiposa. Os doentes com PPP em contexto de carcinoma de células acinares do pâncreas apresentam uma sobrevida média de 4 meses.
CONCLUSÃO
O reconhecimento clínico e diagnóstico atempado da síndrome PPP são fundamentais para alterar o prognóstico da doença de base, associado a esta manifestação clínica. Apesar de ser considerada uma entidade rara, a PPP parece ser um fator de mau prognóstico quando ocorre em contexto de neoplasia, como acontece no carcinoma de células acinares.
Figura I

Nódulos eritematoacastanhados subcutâneos compatíveis com paniculite no membro inferior direito
Figura II

TC abdominal demonstrando múltiplas formações nodulares hepáticas, hipodensas e hipocaptantes, algumas com centro hipodenso em contexto de deposição secundária.
Figura III

Biópsia cutânea demonstrando tecido celular subcutâneo com necrose dos lóbulos adiposos separados por septos alargados e fibrosados, com abundantes macrófagos espumosos, células gigantes multinucleadas de tipo Langhans sem granulomas, linfócitos pequenos dispersos, aspectos morfológicos de paniculite pancreática.
BIBLIOGRAFIA
1. Clara Fernandez-Sartorio, Andrea Combalia, Joan Ferrando, Merce Alsina, Pilar Iranzo, Teresa Estrach et al. Pancreatic panniculitis: A case series from a tertiary university hospital in Spain. Australas J Dermatol. 2018; 59, e269–e272. DOI: 10.1111/ajd.12842
2. Hiroyuki Ariga, Syun Yonezaki, Junya Kashimura, Norio Takayashiki. Pancreatic panniculitis in a patient with pancreatic adenosquamous carcinoma. Clin J Gastroenterol. 2021; 14:382–385. DOI: 10.1007/s12328-020-01269-3
3. Elena Guanziroli, Antonella Colombo, Antonella Coggi, Raffaele Gianotti, Angelo Valerio Marzano. Pancreatic panniculitis: the “bright” side of the moon in solid cancer patients. BMC Gastroenterology. 2018; 18-1. DOI 10.1186/s12876-017-0727-1
4. Hiroshi Kasamatus, Noritaka Oyama, Minoru Hasegawa, Yohei Oku, Genki Inoue, Makiko Kimura et al. Fatal case of pancreatic panniculitis caused by occult neuroendocrine tumor in the corresponding organ: A case report and review of the published work. Jpn J Dermatol B. 2020; DOIi: 10.1111/1346-8138.15646
5. Álvaro Arbeláez-Cortés, Adriana L. Vanegas-García, Mauricio Restrepo-Escobar, Luis A. Correa-Londoño, Luis A. González-Naranjo. Polyarthritis and Pancreatic Panniculitis Associated With Pancreatic Carcinoma Review of the Literature. J Clin Rheumatol 2014; 20: 433–436. DOI: 10.1097/RHU.0000000000000181
6. Sebastian Zundler, Deike Strobel, Bernhard Manger, Markus F. Neurath, Dane Wildner. Pancreatic Panniculitis and Polyarthritis. Curr Rheumatol Rep. 2017; 19: 62. DOI: 10.1007/s11926-017-0690-4
7. Rainer Christoph Miksch, Tobias S Schiergens, Maximilian Weniger, Matthias Ilmer, Philipp M Kazmierczak, Markus O Guba et al. Pancreatic panniculitis and elevated serum lipase in metastasized acinar cell carcinoma of the pancreas: A case report and review of literature.
World J Clin Cases. 2020; 8(21): 5304-5312. DOI: 10.12998/wjcc.v8.i21.5304
8. De la Torre Gomar FJ, Heras González S, Pérez Rodríguez Á, Sáenz Aguirre A, Martínez de Lagrán et al. Paniculitis pancreática como forma de presentación de neoplasia localmente avanzada. Gastroenterol Hepatol. 2020;43:325---326.