INTRODUÇÃO
O bloqueio completo de ramo esquerdo (BCRE) foi desde sempre um obstáculo à identificação eletrocardiográfica do enfarte agudo do miocárdio (EAM), pelas alterações da repolarização que provoca. Os seus critérios diagnósticos são: um QRS >120ms; uma onda S dominante em V1; uma onda R monofásica e alargada nas derivações laterais (I, aVL, V5-V6); ausência de ondas Q nas derivações laterais; um tempo de pico da onda R prolongado >60ms nas derivações laterais. O BCRE é também dotado de uma propriedade: a discordância apropriada, que se refere a um padrão de repolarização anormal em que o segmento ST e a onda T têm direção oposta à do vetor principal do complexo QRS precedente. A perda de discordância apropriada é sugestiva de fenómenos de isquemia do miocárdio.1, 2
Em 1996, Sgarbossa et al.1desenvolveu e validou um conjunto de critérios eletrocardiográficos para o diagnóstico do EAM na presença de um BCRE. O diagnóstico requer pelo menos 3 pontos para uma especificidade ótima (98%), sendo os critérios: uma elevação concordante do segmento ST de 1mm em pelo menos uma derivação (5 pontos); uma depressão concordante do segmento ST ≥1mm nas derivações V1 a V3 (3 pontos); e uma elevação excessivamente discordante do segmento ST de ≥5mm para um QRS negativo (2 pontos). Mais tarde, Smith et al.2 propôs a modificação da regra da elevação excessivamente discordante por um ratio ST/T >0,25, melhorando a sensibilidade diagnóstica e provando ser superior aos critérios originais (Tabela 1).3
CASO CLÍNICO
Os autores apresentam o caso de um homem de 73 anos de idade, com antecedentes patológicos de estenose aórtica grave com substituição valvular percutânea, acidente vascular cerebral hemorrágico sem sequelas, e doença hepática crónica etanólica, que foi admitido no serviço de urgência (SU) por dor retroesternal com duas horas de evolução e lipotímia. Ao exame físico na admissão, apresentava-se consciente e colaborante, pálido, diaforético, polipneico (26cpm), com SatO2 100% em ar ambiente, com presença de fervores bibasais à auscultação pulmonar, normocárdico (70 bpm), com perfil tensional de 107/67 mmHg e apirético. Procedeu-se de imediato à realização de um electrocardiograma (ECG) de 12 derivações, representado na Fig. 1. Verificou-se a presença de ritmo sinusal e de um padrão de bloqueio completo de ramo esquerdo com um QRS alargado (0.12s), presença de uma onda S dominante nas derivações anteroseptais, e de uma onda R alargada nas derivações laterais. Concomitantemente, apresentava perda de discordância apropriada, com uma elevação concordante do segmento ST ≥1mm nas derivações I e aVL onde o complexo QRS é positivo, representadas pelas setas na Fig. 2A. No ECG observa-se ainda que todas as derivações precordiais apresentam um supradesnivelamento do segmento ST excessivamente discordante, o qual, dependendo da derivação em questão, varia entre 31% a 50% da profundidade da onda S que o precede (Fig. 2B). As alterações descritas suscitaram de imediato a suspeita de isquemia do miocárdio em curso.
O doente foi admitido de imediato no laboratório de Hemodinâmica para realização de intervenção coronária percutânea (ICP), tendo a coronariografia revelado a presença de um trombo a condicionar obstrução proximal completa da artéria coronária descendente anterior. Procedeu-se à aspiração do material trombótico bem como à colocação de um stentrevestido por fármaco, com um bom resultado angiográfico final. Terminado o procedimento, o doente foi transferido para a Unidade de Cuidados Intensivos Coronária, onde permaneceu durante seis dias, com reavaliação electrocardiográfica que mostrou a presença de um BCRE sem as alterações previamente descritas (Fig. 3). Realizou também um ecocardiograma transtorácico que mostrou uma função ventricular esquerda comprometida, com acinésia das paredes apical, septal e anterior bem como um trombo no segmento apical do septo. Perante os achados, procedeu-se à anticoagulação do doente. Onze dias após a intervenção, o doente teve alta para o domicílio, não se registando qualquer complicação nos seis meses de follow-up que se seguiram.
DISCUSSÃO
Os achados eletrocardiográficos representam os critérios de Sgarbossa modificados, desenvolvidos a partir dos critérios originalmente criados por Sgarbossa et al. para o diagnóstico de enfarte agudo do miocárdio na presença de um BCRE.2
Após a identificação do ritmo, o passo seguinte na abordagem eletrocardiográfica do doente foi a identificação do BCRE: presença de onda S dominante das derivações precordiais antero-septais, onda R monofásica e ampla nas derivações laterais (I, aVL, V5-V6), QRS alargado (>120ms) e discordância apropriada - propriedade inerente ao BCRE que exibe um padrão de repolarização anormal em que o segmento ST e a onda T têm direção oposta à do complexo QRS. A perda de discordância apropriada deve alertar para a possibilidade de isquemia do miocárdio. No ECG da admissão, é possível notar a perda de discordância nas derivações I e aVL. Em seguida, e atendendo à clínica do doente, devem ser procurados ativamente os critérios de Sgarbossa modificados, por se tratarem de um equivalente eletrocardiográfico do supradesnivelamento ST e terem indicação para abordagem percutânea emergente. Uma análise mais pormenorizada do ECG permite a identificação da elevação concordante do segmento ST nas derivações I e AVL >1mm (5 pontos), uma elevação deste segmento ≥5mm na maioria das derivações precordiais (2 pontos) bem como um ratio ST/T ratio >0,3. Atendendo à pontuação obtida pelos critérios de Sgarbossa e ao algoritmo de diagnóstico e triagem proposto por Cai et al.4 o doente apresentava indicação para terapêutica de reperfusão emergente.
O eletrocardiograma é um exame complementar de diagnóstico de fácil acesso e realização, barato e não-invasivo que permite a obtenção de grande quantidade de informação em contexto de urgência e emergência, em associação com a avaliação clinica do doente. É um exame fundamental na abordagem do doente com precordialgia e, como tal, a prática na sua interpretação pelos clínicos deve ser constantemente estimulada e atualizada. Apesar da presença de um BCRE poder dificultar a identificação eletrocardiográfica do EAM, o caso apresentado revela que o reconhecimento pronto destes achados é crucial para um diagnóstico rápido e uma correta orientação terapêutica dos doentes com dor torácica e com BRCE prévio, dispensando a necessidade de esperar pelos resultados dos marcadores de necrose miocárdica que poderiam condicionar desfechos adversos. Desta forma, torna-se imperativo o treino na interpretação eletrocardiográfica bem como a familiarização com estes critérios.
Quadro I
Critérios de Sgarbossa modificados
Critério | Definição |
| |
Elevação ST concordante | ≥ 1mm em ≥ 1 derivação |
Depressão ST concordante | ≥ 1 mm em ≥ 1 derivação de V1-V3 |
Elevação ST discordante proporcionalmente excessiva | ratio ST/T >0,25 em ≥ 1 derivação |
Tabela 1. Critérios de Sgarbossa modificados
Figura I

Fig. 1 - ECG de 12 derivações na admissão na Sala de Emergência.
Figura II

Fig. 2A - Perda de discordância apropriada com elevação do segmento ST concordante nas derivações I e AVL indicado pelas setas.
Figura II

Fig. 2B - Supradesnivelamento do segmento ST excessivamente e proporcionalmente discordante nas derivações precordiais. Ratio ST/T ratio de 0.31 (5mm/16mm) na derivação V3 indicado pelas barras a cores.
Figura III

Fig. 3 - ECG após estratégia de reperfusão percutânea, com ausência de critérios de Sgarbossa.
BIBLIOGRAFIA
1. Sgarbossa EB, Pinski SL, Barbagelata A, et al. Electrocardiographic diagnosis of evolving acute myocardial infarction in the presence of left bundle-branch block. GUSTO-1 (Global Utilization of Streptokinase and Tissue Plasminogen Activator for Occluded Coronary Arteries) Investigators. (1996) N Engl J Med. http://doi.org/10.1056/NEJM199602223340801
2. Smith SW, Dodd KW, Henry TD, et al. Diagnosis of ST-elevation myocardial infarction in the presence of left bundle branch block with the ST-elevation to S-wave ratio in a modified Sgarbossa rule. (2012) Ann Emerg Med. http://doi.org/10.1016/j.annemergmed.2012.07.119
3. Meyers HP, Limkakeng AT Jr, Jaffa EJ, et al. Validation of the modified Sgarbossa criteria for acute coronary occlusion in the setting of left bundle branch block: A retrospective case-control study. (2015) Am Heart J. https://doi.org/10.1016/j.ahj.2015.09.005
4. Cai Q, Mehta N, Sgarbossa EB, Pinski SL, et al.The left bundle-branch block puzzle in the 2013 ST-elevation myocardial infarction guideline: from falsely declaring emergency to denying reperfusion in a high-risk population. Are the Sgarbossa Criteria ready for prime time? (2013) Am Heart J. https://doi.org/10.1016/j.ahj.2013.03.032