Introdução:
A Síndrome de Felty (SF), descrita pela primeira vez em 1924 por Augustus Felty, é caracterizada pela tríade artrite reumatóide (AR), neutropenia e esplenomegalia.1-2É uma manifestação extra-articular rara da AR, presente em menos de 3% dos doentes, sendo mais prevalente em mulheres e diagnosticada mais frequentemente entre a 5ª e a 7ª décadas de vida.3-4 A sua etiologia não é clara, contudo parece existir uma associação por um lado com a elevada prevalência de homozitgotia para o antigénio leucocitário humano (HLA) DR4 nos doentes com SF, por outro, comfatores ambientais, como a imunosuperessão crónica utilizada nas formas agressivas de AR.1 A fisiopatologia da neutropénia associada ao SF é multifatorial, incluindo o aumento do sequestro dos neurófilos, com consequente esplenomegalia, a sua destruição periférica e a diminuição da sua produção ao nível da medula óssea. Estes dois últimos mecanismos parecem estar associados à presença de auto-anticorpos contra o fator de crescimento hematopoiético (G-CSF).5
Na maioria dos casos surge, pelo menos, 10 anos após o diagnóstico da AR e associa-se a outras manifestações extra-articulares como vasculite, serosite ou adenopatias.5 Os autores apresentam um caso atípico de SF numa doente sem diagnóstico ou clínica de AR.
Caso Clínico:
Apresentamos o caso de uma mulher de 69 anos, com antecedentes de hipertensão arterial e dislipidemia de longa data, que é referenciada à consulta de medicina interna por neutropenia de início recente, tendo em conta que apresentava hemograma sem alterações realizado 6 meses antes. A doente negava dor torácica, dispneia ou tosse. Negava náuseas, vómitos, dor abdominal, sintomatologia urinária, anorexia ou perda ponderal. Sem história de início de novos fármacos ou viagens recentes. Ao exame físico apresentava-se apirética, normotensa e normocárdica. Sem alterações na auscultação cardíaca ou pulmonar. A nível abdominal não se palpavam massas ou organomegalias. Sem adenopatias palpáveis.
O estudo analítico confirmava a neutropenia com 2100/µL leucócitos e 300/µL neutrófilos, sem alterações no restante hemograma. Esfregaço de sangue periférico sem alterações morfológicas específicas, confirmando, contudo, a monocitose. Velocidade de Sedimentação (VS) de 3 mm/1ª hora, Proteína C-reativa (PCR) 0,09 mg/dl. Serologias virais negativas nomeadamente para o HIV 1 e 2, Citomegalovírus, vírus Epstein-Barr, herpes simples, hepatite A, hepatite B e hepatite C. Ausência de anticorpos para a Sífilis. Apesar de recomendada a realização de ecografia abdominal na avaliação etiológica de neutropénia, neste caso dada a ausência de sintomatologia, protelou-se a sua realização. A doente manteve-se assintomática, pelo que se optou pela reavaliação aos 2 meses, altura em que para além da neutropenia (Neutrófilos = 300/ µL) a doente apresentou anemia, com o valor de hemoglobina de 11,4 g/dL. Por suspeita de doença linfoproliferativa foi realizada biópsia óssea e mielograma que revelaram medula hipercelular, sem doença linfoproliferativa.
Uma vez excluídas causas infecciosas e hematológicas, apesar de pouco provável dada a ausência de sintomatologia concordante, foi pedido estudo analítico com auto-imunidade, nomeadamente fator reumatóide (FR), anticorpos anti-peptídeos citrulinado (Anti-CCP) e anticorpo Anti-nuclear (ANA), que se revelaram positivos: FR de 2090 UI/mL, Anti-CCP >340 U/mL e ANA positivo com um título de 1/640. Pela presença de neutropenia e diagnóstico serológico de AR, foi colocada a hipótese diagnóstica de SF, tendo a doente realizado ecografia abdominal que mostrou baço com 16 cm no seu maior eixo, confirmando assim a esplenomegalia. Assim, confirmou-se o diagnóstico de SF como apresentação inaugural de um caso de AR. A doente realizou radiografia às mãos e punhos bilateralmente, que não mostraram alterações articulares, e iniciou terapêutica modificadora da doença com Hidroxicloroquina. Aos 4 anos após o diagnóstico do SF, a doente mantém-se sem clínica de artrite ou sinovite, analiticamente com hemoglobina de 12g/dl e leucócitos de 4500/µL (neutrófilos 2200/µL). Pela alta probabilidade de manifestações articulares e extra-articulares de AR, manterá seguimento em consulta.
Discussão:
A AR é uma patologia auto-imune, inflamatória, sistémica, que se caracteriza pela inflamação crónica do tecido sinovial, o que resulta na perda de integridade e destruição das articulações envolvidas. O envolvimento extra-articular é incomum, mas variado, podendo evoluir com doença do interstício pulmonar, pericardite, osteopenia, vasculite, episclerite ou nódulos reumatóides.2
A SF representa uma manifestação extra-articular, particularmente grave, da AR. O seu diagnóstico é clínico e caracteriza-se, na maioria dos casos, pela tríade de AR de longa data, esplenomegalia e neutropenia. Em alguns casos a tríade pode não estar completa, mas a presença de uma contagem absoluta de neutrófilos inferior a 1500/µL é uma condição necessária para o diagnóstico da SF.1,3 Adicionalmente podem estar presentes outras alterações como anemia, trombocitopenia, infeções bacterianas recorrentes, úlceras cutâneas, hipertensão portal idiopática e pode ainda associar-se a doenças linfoproliferativas como linfomas, tanto de Hodgkin como não Hodgkin.4,6
Se por um lado a probabilidade de um doente com AR ser diagnosticado com SF varia de 1% a 3%, por outro mais de 95% dos doentes com SF apresentam títulos altos de FR, e tipicamente a artrite é diagnosticada pelo menos 10 anos antes da neutropenia.7 As alterações articulares, nomeadamente as erosões e deformidades, são habitualmente graves quando presentes na SF. Em casos raros a neutropenia surge antes do diagnóstico de artrite, sendo este caso um exemplo disso.6
Neste caso a doente foi referenciada à consulta por neutropenia e, ao contrário do descrito na literatura em que as infeções muitas vezes são recorrentes, apresentava-se assintomática. Na presença de um quadro como este deve ser confirmada a neutropenia e excluídas causas infecciosas, hematológicas e auto-imunes. Dado o grupo etário da doente e a ausência de clínica acompanhante, bem como a ausência de elevação dos parâmetros laboratoriais de inflamação (VS = 3mm/1hora e PCR = 0,09 mg/dl), a etiologia auto-imune pareceu-nos pouco provável.
Após exclusão de causas infecciosas e hematológicas, foi pedido estudo analítico da auto-imunidade com títulos consideráveis quer de FR quer de anti-CCP. O anti-CCP tem uma especificidade de 96% para a AR e, quando combinado com o FR, apresenta uma especificidade de 99,5%, sendo a positividade de ambos altamente preditiva para o desenvolvimento de erosões aos 5 anos de doença.8
Estamos, portanto, perante uma apresentação atípica de SF, tendo em conta que a doente não tinha sintomatologia prévia de AR nem alterações erosivas. Não existem testes específicos que confirmem a SF, sendo o seu diagnóstico clínico em doentes com AR que apresentem neutropenia e esplenomegalia não explicadas por outro motivo. Neste enquadramento importa ainda excluir o diagnóstico de Leucemia Linfocítica Granular T - patologia linfproliferativa rara, associada ao aumento de colónias de linfócitos T CD3+. Apresenta uma maior prevalência em indivíduos com patologia auto-imune, e clinica e imununologicamente é muito semelhante à SF, nomeadamente no que diz respeito à expressão de HLA-DR4. Ambas se apresentam de forma indolente e respondem à terapêutica modificadora da AR. Dadas a todas as semelehanças já existem várias teorias que apoiam tratarem-se partes da mesma patologia.9-10
Dada a raridade desta síndrome, o tratamento da SF é baseado sobretudo em séries de casos, não havendo estudos randomizados disponíveis. Para o tratamento da neutropenia o que está preconizado é a instituição de terapêuticas modificadoras da doença, nomeadamente Metotrexato, Hidroxicloroquina, corticóides, e, em casos selecionados, pode ser necessária a utilização de fatores de crescimento hematopoiético (G-CSF). Se a neutropenia for refratária a toda a terapêutica médica, pode haver indicação para a realização de esplenectomia.11
A primeira escolha nesta doente, dada a ausência de artrite ou de sintomatologia relacionada com a neutropenia como infeções recorrentes, foi a hidroxicloroquina, apresentando progressiva melhoria da neutropenia.
Para os casos refratários à terapêutica convencional, já existem alguns relatos sobre a utilização de terapêutica biológica com Rituximab, ainda que possa existir falência terapêutica.12
Relativamente ao G-CSF, não tem qualquer efeito na atividade da AR, mas é relativamente eficaz, especialmente nos casos de neutropénia severa quando associado a terapêuticas modificadoras de prognóstico como o Metotrexato.1
Conclusão:
A SF é uma manifestação rara da AR. Neste caso, pela SF se apresentar como o diagnóstico inaugural de AR, torna-o extremamente raro e desafiante.
Apesar desta síndrome ter sido descrita há mais de 80 anos, não existe nenhum tratamento dirigido ou estratégia de seguimento preconizada. Deve instituir-se terapêutica modificadora da doença, G-CSF ou esplenectomia se necessário, sendo que nos casos de neutropenia e esplenomegalia ligeiras se pode adotar uma atitude expectante. Contudo, neste caso, e tendo em conta a gravidade da neutropenia, o início de terapêutica com Hidroxicloroquina revelou-se uma atitude de sucesso – assistiu-se à melhoria da neutropenia e à consequente diminuição do elevado risco infeccioso preexistente.
Contudo, a principal mensagem a transmitir com este caso é a de que, na ausência de clínica de artrite ou sinovite, ou mesmo do diagnóstico de AR, perante um doente com neutropenia nunca se deve descartar a hipótese diagnóstica de SF. Neste enquadramento, o doente deve manter seguimento regular: existe uma elevada probabilidade do doente vir a desenvolver manifestações quer articulares quer extra-articulares no futuro, com impactos notórios na sua qualidade de vida, sendo, como tal, de suma importância o diagnóstico da doença numa fase incipiente.
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