Introdução:A análise sumária de urina (ASU), engloba a avaliação macroscópica, bioquímica e microscópica da amostra de urina. É um exame barato e de extrema valia clínica quando corretamente interpretado,1 nomeadamente na avaliação de alguns parâmetros por vezes desvalorizados, como representam os 4 casos seguintes.
Caso 1:Doente do sexo masculino, 30 anos, sem antecedentes patológicos, recorreu ao Serviço de Urgência (SU) por mialgias após exercício intenso. Negava episódios anteriores e outros sinais ou sintomas relevantes. A ASU deste caso está descrita na tabela 1.
A destacar hemoglobina de 300/uL na ASU, contudo sem eritrócitos no sedimento, o que não é compatível com hematúria. Normalmente, mas de forma errónea, a hematúria é frequentemente assumida apenas pela presença desta alteração na análise bioquímica sem confirmação no sedimento urinário.
A maioria dos laboratórios, na análise bioquímica, refere-se à identificação de sangue na urina como a concentração de “hemoglobina” ou “eritrócitos”, porém, especificamente é avaliada a presença do grupo heme. Estes testes utilizam a pseudoperoxidase da hemoglobina para catalisar uma reação química entre o grupo heme e um cromogénio específico que produz uma cor verde-azulada na tira teste.2 Quando a avaliação bioquímica revela esta alteração, podem estar presentes glóbulos vermelhos intactos, detetados também no sedimento urinário, hemoglobina ou mioglobina livres. A nível sérico objetivou-se creatinina cinase (CK) de 213 600 U/L, com CK-MB normal, assumindo-se o diagnóstico de rabdomiólise e consequente presença de mioglobinúria. A proteinúria objetivada é compatível com a nefrotoxicidade tubular da mioglobina. Neste caso, a interpretação adequada da ASU contribuiu para um diagnóstico e atitude terapêutica precoces que impediram uma provável lesão renal grave.
Caso 2:Doente do sexo masculino, 54 anos, com antecedentes de várias infeções do trato urinário (ITU) e oligofrenia. Recorreu ao SU por prostração e oligúria associados a urina turva. O doente não exprimia queixas e não se evidenciaram outras alterações relevantes no exame objetivo. Foi realizada ASU relatada na tabela 2. Fez ainda ecografia renal que evidenciou litíase coraliforme.
A ASU revelou leucocitúria e hematúria importantes associada a pH de 7,5, nitritos positivos e proteinúria. No sedimento urinário confirmou-se hematúria e leucocitúria. A nível sérico destacou-se ausência de leucocitose, proteína C reativa (PCR) de 51,2 mg/L, natrémia de 154 mmol/L, creatinina de 5,40 mg/dL e ureia de 156 mg/dL. Em ASU anteriores verificou-se que apresentava recorrentemente pH urinário alcalino. A urocultura isolouProteus mirabilis.
Este caso pretende sobretudo dar ênfase à utilidade de avaliação do pH urinário, parâmetro pouco valorizado, nomeadamente para suspeitar de situações que possam ter complicações futuras potencialmente evitáveis.
O pH urinário varia entre 5,0 e 6,0 em condições normais, podendo ser influenciado por diarreia, desidratação, enfisema pulmonar/DPOC ou a presença de bactérias produtoras de ácido que podem tornar a urina ácida. Inversamente, vómitos, hiperventilação, alimentação vegetariana ou a presença de bactérias produtoras de urease podem alcalinizar a urina,2,3 situação enquadrada no presente caso.
O meio alcalino proporciona a formação de estruvite através da formação de amónia e hidróxido a partir da quebra da ureia pela ação da urease produzida por bactérias com essa capacidade enzimática4-6, nomeadamenteProteus(76%),Klebsiella,Pseudomonase Staphylococcus, podendo haver uma associação entre ITU causadas por estas bactérias e litíase coraliforme.4,5 Assim, em doentes com ITU frequentes com pH urinário alcalino, a hipótese diagnóstica de litíase coraliforme secundária a infeção, frequentemente porProteus, deve colocada.
Os cálculos coraliformes formam-se nos rins e podem preencher a pélvis e cálice renais. São compostos por uma mistura de estruvite e carbonato de cálcio e também chamados de “cálculos de infeção” já que existem bactérias à superfície e no seu interior, realidade diferente de outro tipo de cálculos que são estéreis no seu interior.4-6
Neste caso clínico, demostra-se a importância da interpretação do meio alcalino da urina já que permite antecipar a presença de bactérias produtoras de urease, como oProteus mirabilis. As infeções por esta bactéria requerem precauções extra quando associadas a litíase, pois os cálculos necessitam ser removidos por litotrícia ou outra técnica adequada e a urina deve ser avaliada mensalmente durante 3 meses após término do antibiótico. Mesmo na ausência de cálculos, o seguimento do doente com a realização de uroculturas está recomendado para assegurar a remoção desta bactéria do trato urinário como prevenção de formação de litíase7.
Caso 3:Doente do sexo masculino, 74 anos, com antecedentes de diabetes mellitus tipo 2, cardiopatia isquémica, gota e artrite reumatoide, avaliado em consulta de rotina. A avaliação analítica incluiu uma ASU, representada na tabela 3.
A ASU revelou bilirrubinúria de 4 mg/dL sem outras alterações.
A bilirrubina é um produto da degradação da hemoglobina que é transportada pela albumina para o fígado (bilirrubina não conjugada ou indireta), conjuga-se com ácido glicorónico pela ação da enzima glicuronil transferase e forma um composto hidrossolúvel denominado bilirrubina conjugada (ou direta). Esta é transportada via ducto biliar para o intestino, onde a maioria é convertida a urobilinogénio pela ação bacteriana e eliminada nas fezes.2,3 Quando este ciclo é interrompido por obstrução das vias biliares ou por disfunção hepática, a bilirrubina conjugada é drenada para a circulação sanguínea e por ser hidrossolúvel é excretada a nível renal através da urina.2,3 A presença de bilirrubinúria pode antecipar uma doença hepática ou biliar de forma precoce e surge geralmente antes do doente estar ictérico.2,3 Os falsos positivos podem surgir devido à toma de etodolac, rifampicina ou clorpromazina ou se a amostra ficar demasiado tempo exposta à luz solar.2,3
Neste caso, por não haver alterações nas provas de função hepática, marcadores de lesão hepática e bilirrubinas, realizou-se uma ecografia abdominal que excluiu obstrução biliar. Manteve-se a vigilância na consulta, com persistência de bilirrubinúria com o doente sempre assintomático.
Seis meses da detecção do primeiro episódio de bilirrubinúria, o doente recorreu ao SU por dor abdominal no hipocôndrio direito com irradiação para a região posterior e escleras sub-ictéricas. Apresentava sinal de Murphy vesicular positivo e analiticamente bilirrubina direta sérica de 2,47 mg/dL, elevação dos marcadores de lesão hepática e elevação de GGT. Foi realizada nova ecografia abdominal que revelou vesícula biliar com múltipla litíase de pequeno tamanho com espessamento da parede com aumento da vascularização compatível com colecistite aguda litiásica não complicada. Durante o internamento houve aumento consistente dos parâmetros de colestase culminando na realização de uma colangiopancreatografia retrógrada endoscópica para realização de papilotomia e extração dos microcálculos com melhoria do quadro.
Este caso clínico demostra a importância da interpretação da bilirrubinúria, que quando surge é praticamente sempre patológica e obriga a um estudo hepático e biliar aprofundado.
Caso 4:Doente do sexo masculino, 63 anos, com antecedentes de hipertensão arterial, status pós paratiroidectomia parcial por hiperparatiroidismo primário, pancreatites recorrentes secundárias a hipercalcémia, tabagismo ativo, doença renal crónica secundária a nefroangioesclerose hipertensiva e sem história de diabetes mellitus. Foi avaliado em consulta e apresentava a ASU descrita na tabela 4.
A ASU revelou importante glicosúria de 500 mg/dL e proteinúria não valorizável. A glicosúria estava ausente nas ASU anteriores.
Este caso pretende sobretudo dar ênfase à presença de glicose de urina. A glicose é totalmente filtrada a nível glomerular sendo posteriormente reabsorvida no túbulo contornado proximal. Quando a glicémia atinge valores superiores a 180 mg/dL, ultrapassa a capacidade de reabsorção renal sendo o excesso excretado pela urina.2,8
Perante o achado de glicosúria foi avaliada a hemoglobina glicada (HbA1c) revelando um valor de 6,3% e dados conselhos dietéticos e modificação do estilo de vida. Foi feita reavaliação após 3 meses que evidenciou uma HbA1c de 8,9% com persistência de glicosúria, confirmando-se o diagnóstico inaugural de diabetes.
Este caso revela a importância da avaliação crítica da glicosúria em doentes não diabéticos que pode alertar para o desenvolvimento desta patologia. Mesmo fora da índole deste caso, em doentes diabéticos não medicados com inibidores da SGLT-2, a presença de glicosúria poderá evidenciar um mau controlo glicémico pelo mecanismo fisiopatológico descrito anteriormente.
Conclusão:Estes 4 casos clínicos vêm reforçar a importância de interpretar todos os parâmetros da ASU de forma atenta, já que é um exame não invasivo e muito barato que nos pode dar informações muito relevantes na marcha diagnóstica ou tratamento e podem antecipar quadros mais graves e até ameaçadores de vida.
Quadro I
Análise sumária de urina do caso clínico 1
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Parâmetro | Resultado |
Aspeto | Limpo |
Cor | Laranja claro |
Densidade | 1.011 |
pH | 6,5 |
Leucócitos | Negativo |
Nitritos | Negativo |
Proteínas | 150 mg/dL |
Glicose | Normal |
Corpos cetónicos | Negativo |
Urobilinogénio | Normal |
Bilirrubina | Negativo |
Hemoglobina | 300/uL |
Sedimento urinário | Sem alterações |
Resultado da análise sumária de urina do caso clínico 1.
Quadro II
Análise sumária de urina do caso clínico 2
| |
Parâmetro | Resultado |
Aspeto | Turvo |
Cor | Amarelado |
Densidade | 1.016 |
pH | 7,5 |
Leucócitos | 500/uL |
Nitritos | Positivo |
Proteínas | 100 mg/dL |
Glicose | Normal |
Corpos cetónicos | Negativo |
Urobilinogénio | Normal |
Bilirrubina | Negativo |
Hemoglobina | 60/uL |
Sedimento urinário | > 50 Leucócitos/campo 5-15 Eritrócitos/campo |
Resultado da análise sumária de urina do caso clínico 2.
Quadro III
Análise sumária de urina do caso clínico 3
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Parâmetro | Resultado |
Aspeto | Limpo |
Cor | Amarelado |
Densidade | 1.017 |
pH | 6,0 |
Leucócitos | Negativo |
Nitritos | Negativo |
Proteínas | Negativo |
Glicose | Normal |
Corpos cetónicos | Negativo |
Urobilinogénio | Normal |
Bilirrubina | 4 mg/dL |
Hemoglobina | Negativo |
Sedimento urinário | Sem alterações |
Resultado da análise sumária de urina do caso clínico 3.
Quadro IV
Análise sumária de urina do caso clínico 4
| |
Parâmetro | Resultado |
Aspeto | Limpo |
Cor | Amarelado |
Densidade | 1.011 |
pH | 5,5 |
Leucócitos | Negativo |
Nitritos | Negativo |
Proteínas | 20 mg/dL |
Glicose | 500 mg/dL |
Corpos cetónicos | Negativo |
Urobilinogénio | Negativo |
Bilirrubina | Negativo |
Hemoglobina | Negativo |
Sedimento urinário | Sem alterações |
Resultado da análise sumária de urina do caso clínico 4.
BIBLIOGRAFIA
1. Roxe DM. Urinalysis. In: Walker HK, Hall WD, Hurst JW, editors. Boston; 1990.
2. Strasinger SK, Lorenzo SL. Urinalysis and Body Fluids. 6th ed. Philadelphia: F.A. Davis, 2014.
3. Patel HP. The abnormal urinalysis. Pediatr Clin North Am. 2006 Jun;53(3):325–37, v.
4. Marques JJ, Muresan C, Lúcio R, Almeida M, Melo P, Correia R, et al. Lítiase coraliforme: caso clínico raro e complicado. Acta Urol. 2011 Dez;4:58-61.
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6. Zhao P. Staghorn calculi in a woman with recurrent urinary tract infections: NYU Case of the Month, December 2016. Rev Urol. 2016;18(4):237–8.
7. Schaffer JN, Pearson MM. Proteus mirabilis and Urinary Tract Infections. Microbiol Spectr. 2015 Oct;3(5).
8. Echeverry G, Hortin GL, Rai AJ. Introduction to urinalysis: historical perspectives and clinical application. Methods Mol Biol. 2010;641:1–12.